MURMÚRIOS FOTOGRÁFICOS |Ana Margarida Silva
Num mundo em desalinho, como recomeçar?
Mirar a palavra “recomeços”, pode reenviar, nesta época do calendário, para as alegrias e vicissitudes de um novo ano letivo que todos desejamos ser pleno de sucesso, remeter para trilhos de aprendizagens construídos em união entre agentes e baseados em afetos. Reconhecendo que tudo isto é, evidentemente, relevante, não é, no entanto, esta a aceção para junto da qual, no que me diz respeito, coração e razão bifurcam, pois, os matizes do conteúdo semântico de tal vocábulo, prenhe de esperança e resiliência, com Sísifo na liderança, sugerem que o meu olhar deve ser reorientado…
Recomeços… A sonoridade que lhe ouço, em tempos sombrios, reencaminha-me para palavras relativas ao estilhaçar interior, à perda, aos traumas insuperáveis, ao cerco, à privação de bens essenciais, à morte de inocentes, à disforia, ao mundo carnavalesco em que nos vemos mergulhados em pleno século XXI. Como recomeçar, quando a paisagem mundial é o de uma sanguinolenta carnificina perpetrada pelo Homem para com o seu semelhante, em variadíssimos pontos do globo? Como recomeçar, quando o jogo no tabuleiro mundial não permite a renovação das tréguas, mas antes a permanência das trevas, e torna colossalmente audível a agonia? Como recomeçar, quando a paisagem fraterna se esboroa e dá lugar aos bloqueios marítimo, aéreo, terrestre, ao roubo de vidas inocentes, à impossibilidade de reconstruir existências destroçadas? Como recomeça o “bicho da terra tão pequeno”, quando diante de si outros avessos de si mesmo, com o seu sempiterno desassossego e ambição, superam os bárbaros ardis de Lúcifer e o substituem na perfeição? Como recomeçar quando se é sitiado, desapossado, desprezado, amarfanhado, amarrotado e o futuro é o de irremediavelmente jazer como servil farrapo ancião arremessado em devastada dobra terrena? Náufrago em ruínas depositado sobre um chão em ruínas… Onde encontrar o exímio fertilizante capaz de remendar feridas ocasionadas por guerras e suas consequências? Como recomeçar quando a realidade socioeconómica persiste em devorar Direitos Humanos?
Submeter o mapa ao nosso escrutínio significa, forçosamente, apreender os contornos tão ardilosos do mundo, darmo-nos conta das pedras de peso excessivo que cada bagageiro carrega e verificarmos tsunamis impiedosos varrendo existências cativas de um lugar estéril, onde a insensatez e a tragicidade são perpétuos e inexoráveis ingredientes. Vislumbrar a fragilidade do ser humano preso à matéria e à finitude e entreolhar-lhe os instintos grotescos que teimosamente, desde que o mundo é mundo, direciona para o seu semelhante significa vivenciar uma avassaladora angústia que dessa observação resulta. E, se é certo que a força só deve abandonar o ser humano, quando este se aquieta no seu leito final, como recomeçar quando o planeta se constitui enquanto espaço exíguo onde a tirania se dissemina e os limites fronteiriços se tornam exacerbados?
Perante a fraturação e a infernal disforia que atingem desumanamente quem nasce no “lugar errado” do planeta, (se é que nascer numa determinada área do cosmos, que a todos pertence, poderá constituir delito), todos nos sentimos compadecidos e nos confrontamos com a ideia de finitude.
Talvez Albert Camus e Jean-Paul Sartre, entre muitos outros pensadores, tenham indicado a via a seguir: demasiada reflexão dissemina na nossa existência o absurdo que ela contém, já que procurar sondar-lhe uma arquitetura racional faz esbarrar nosso entendimento na imagem de um mundo em perpétuo desalinho. Se é verdade que a vida de cada caminheiro pode resvalar a qualquer momento, há que abraçar essa contingência, realizar a viagem que a cada um compete, procurando que ela seja uma verdadeira redenção, um grito de revolta perante um mundo às avessas…. É certo, a foice da morte é inelutável, porém, a vontade férrea de uma vida intensa deve ser o propósito de cada um, pois é nessa vivência absoluta que a plenitude pode ser alcançada e o absurdo derrotado. O pedregulho diário que cada um carrega ladeira acima é a nossa condenação no plano terreno e a injustiça reside, decerto, no facto de a cada bagageiro lhe ser atribuído, pelos meandros absurdos de uma ordem ininteligível, uma carga distinta. Sendo o fardo votado a resvalar serra abaixo, a nossa sentença é a de Sísifo: impelir a bagagem ad aeternum até ao cume, sabendo que, inevitavelmente, estamos subjugados ao eterno recomeço. Como recomeçar, quando o absurdo do mundo é uma evidência? Como cicatrizar feridas emocionais e físicas, curar a mente, recuperar a esperança após tremendas perdas? Talvez recuperando em si, e pelo viés de uma rede de muita ajuda, a noção de beleza que o mundo contém e que suaviza toda a miséria terrena; procurando o redentor renascimento, acreditando na fraternidade, lançando fora a penumbra…
Que o caminho é árduo, certamente o será, mas recomeçar, render-se ao sempiterno impulso irreprimível da partida é o gesto que, do berço à tumba, não admite tergiversação e possibilita não só troçar do absurdo da vida, como também desfrutar da suavidade de uma viagem existencial que, afinal, se cumprirá como fósforo consumido pela chama.