Alice Marques |Textos e Afins


Desafiada, também eu, a escrever sobre o amor na edição do P&V do mês de S. Valentim, encontrei, no arquivo, este texto de amor. Um texto destes só se escreve quando se está apaixonada. Eu estava!
Deixa-me aninhar no teu colo e conta-me as tuas histórias de criança. Fala-me daquele menino que vejo quando olho dentro dos teus olhos. Diz-me a cor do teu primeiro triciclo, conta-me quantas vezes caíste, mostra-me os teus joelhos esmurrados, as calças rasgadas, os “galos” na cabeça. Deixa-me ver a tua primeira bicicleta reluzente, os caminhos por onde andaste. Mostra-me as ruas onde brincaste na tua primeira infância. Conta-me o teu primeiro dia de escola, deixa-me espreitar a tua mochila, os teus lápis, os teus livros, os teus cadernos, as tuas primeiras letras, o teu nome escrito pela primeira vez. Diz-me como era a primeira prenda que deste à tua mãe no dia da mãe e ao teu pai no dia do pai, apresenta-me a tua irmã, fala-me das brigas que tiveram, dos brinquedos que partilharam, do quarto onde dormiam, dos teus carrinhos, do teu primeiro bibe. Mostra-me os teus retratos de família em cima da cómoda, o da tua primeira namorada, aquele que guardas numa carteira velha. Diz-me a que sabia o teu primeiro beijo, quão forte foi o teu primeiro desejo, o que sentiste na tua primeira vez. Deixa-me ver os retratos que guardas em caixas, aqueles em que estás de mão dada com as tuas namoradas, aqueles em que estão os dois estendidos na areia da praia. Deixa-me ler as cartas de amor que te escreveram e as que elas, zangadas, te devolveram. Deixa-me cheirar as pétalas de rosa que puseste a secar dentro dos livros, deixa-me vasculhar as tuas gavetas e tocar os destroços dos objectos que amaste.
Conta-me, com a memória que te deu a tua mãe, quando te nasceu o primeiro dente, quando pegaste sozinho na colher, quando deste o primeiro passo, qual foi a primeira palavra que disseste.
Quando te ouço falar da tua mãe já morta, com um sentimento que ainda não entendo, vejo em ti uma suprema humanidade e dou-me conta de quão pouco sei de ti! Como se chama a tua irmã, o teu pai, a tua mãe, os teus avós? Já morreram? Onde estão enterrados? Que sonhos sonharam para ti? Conta-me as histórias que o teu avô te contava.
Eu não sei nomear o que sinto, olho para dentro de mim e mal consigo distinguir o que vejo. Lembro-me de mim, menina, de muitos dias de escola, do meu vestido do dia do exame da 4ª classe, do que sonhava ser – artista de circo, depois hospedeira de aviões, depois escritora, depois jornalista! Lembro-me do meu avô materno. Ele queria que eu fosse escritora e, por isso, aos 11 anos já eu ia com ele requisitar livros à biblioteca itinerante da Gulbenkian. Deu-me um mundo fantástico a descobrir, com heróis que se chamavam Ulisses e Eneias e outros mais estranhos, como Agamémnon e Ajax, e com a sua infinita sabedoria foi-me deixando penetrar nos romances de amor de Camilo Castelo Branco, muito antes de os professores de português torturarem na escola os versos de Camões. Já não estás cá para saber, avô, mas ainda assim deixa-me dizer-te: eu tornei-me uma jornalista mas continuo a querer ser escritora, e ensaio grandes histórias nestes fragmentos de discurso amoroso. Sinto-me iluminada pela luz de um homem que me devolve a capacidade de ver beleza em tudo o que olho e a coragem de mergulhar dentro da minha vida distante, de recuperar os sentidos. Aquilo que tu me dizias: “não percas a capacidade de sentir”. Por isso este texto que escrevo é para ele e também para ti.
O circo e os livros foram as minhas primeiras paixões. Percorrendo as veredas e encruzilhadas da memória, revejo-me com sete anos, correndo atrás dos comediantes, o circo dos pobres da minha aldeia, que de tempos a tempos vinha instalar-se no largo da capela da Senhora da Saúde. Fascinavam-me os comedores de fogo, as trapezistas de fatos brilhantes, muito mais do que os palhaços, que nunca me fizeram rir. Gostava do perigo de ser incendiada, do risco de trabalhar sem rede. Nos dias de circo, perder-me e achar-me era na casa do meu avô, ali mesmo no largo, sempre tentando escapulir-me ao seu zelo de professor para me ensinar as contas de multiplicar, aquelas grandes, enormes, que ocupavam a folha inteira do caderno quadriculado e me faziam chorar baba e ranho se a prova dos nove não desse certo. E quando o circo levantava arraiais e partia para outras paragens, era eu que, às escondidas da minha mãe, me pendurava numa escada ou na cancela que dava para o pátio, treinando os exercícios de trapezista, perante o olhar inquieto das ovelhas e o cacarejar das galinhas. Foi num exercício de equilibrismo mal sucedido – guiar uma bicicleta sem mãos – como tantas vezes vira fazer, que parti gravemente a cabeça e fui parar ao hospital. O regresso do hospital e as semanas de convalescença proporcionaram-me a descoberta dos livros. Nem o saco de gelo na cabeça, nem a incómoda posição em que me mantinha durante horas me dissuadiam de mergulhar nos romances de cordel, a única literatura sempre disponível lá por casa. Lembro-me de chorar muito com o romance da Ceguinha, um livro em fascículos que a minha mãe guardava longe dos meus olhares indiscretos, mas que eu sempre soube onde estava. Ficava, horas a fio, devorando as páginas, até que a sua voz viesse despertar-me daquele torpor ou que a noite me impedisse de ver as letras.
-Vem jantar, Alice, deixa o livro – chamava ela.
Mas quando à noite regressava à cama, num quarto sem luz eléctrica e num tempo em que o magro salário do meu pai mal dava para o petróleo, regressava também aos caminhos ermos da triste ceguinha que, por nunca ter podido ver o mundo, inventou um para ela, onde todas as pessoas a amavam sem compaixão.
O meu avô, adivinhando em mim um desmesurado gosto pelas letras, começou então a orientar as minhas leituras e a acalentar a esperança de que eu pudesse vir a ser uma escritora, daquelas que ganham prémios e têm a fotografia nos jornais. Só me contou este sonho no leito de morte, tinha eu 19 anos, mas enquanto viveu e eu fui menina, foi-me dando livros emocionantes, para alimentar os meus sonhos e os dele. Foi com os olhos do meu avô que comecei a ver mundos imaginários e, com a sua voz, que comecei a entender o poder mágico das palavras, que ainda hoje me espanta. Não fiz promessas ao meu avô quando o ouvi contar o sonho que tinha para mim. Mas quando senti a vida dele escoar-se por entre os últimos murmúrios, quando as suas mãos largaram as minhas e eu, já debulhada em lágrimas, só consegui dizer-lhe “adeus avô”, quando senti o estertor da morte percorrer-lhe o corpo, reentrei, em silêncio, dentro de mim e pensei: não sei se realizarei o teu sonho, mas vou continuar a sonhá-lo.
Depois eu cresci, tornei-me uma jovem rebelde, tive uma primeira vez que não foi, e fiquei grávida, fui mãe aos dezoito anos e fui perdendo o que o meu avô me tinha pedido para não perder – a capacidade de sentir. Nada mais me importava a não ser ler e aprender, para ter ideias com I grande, fui-me afastando da terra, da alegria de acordar de manhã, abrir a janela e ver o canavial.
Estive hoje sentada no último degrau da escada exterior que dá acesso ao sótão da velha casa, agora ruína, onde, às vezes, às escondidas, devorava páginas do romance da Ceguinha. Como me parece pequena agora, esta casinha! E o canavial … afinal meia dúzia de canas da Índia à beira do fio de água que corre ao fundo do quintal. Mas à volta parece que nada mudou – as terras de castanho profundo, o cheiro forte a humidade. As árvores ainda não floriram, mas o amarelo das flores dos nabos dá um toque de Primavera aos campos de Inverno. Há quantos anos não me sentava ali? Passaram 40? 50? O que andei a fazer durante todo este tempo? A ensinar a ler, a escrever, a pensar? A esquecer-me de mim?
Como é possível ter passado tanto tempo sem encontrar um homem que compreendesse o que se passava dento de mim? Um homem com quem pudesse falar de tudo com verdade: dos sonhos (ser isto, ser aquilo, quando for grande), das frustrações (o que não consegui ser), dos medos (de ficar sozinha, de envelhecer, de morrer), das esperanças (amar, ser amada, ser feliz). Mas eu sempre pensei que o tinha encontrado, naquele, no outro, em muitos deles. Dormi com eles, entreguei-lhes o corpo mas fechei a alma. Apesar de ter gostado deles. Lembro-me de momentos de quase intimidade, de momentos breves de prazer. Quem sabe, de ter sido feliz! Lembro-me da cama, do sexo, umas vezes bom, outras mau, mas nunca senti que umas horas pudessem ser a eternidade. Queria que se fossem embora quando já não havia nada para partilhar. Satisfeito o desejo do corpo, eu só queria ficar sozinha e foi assim que comecei a construir a tese do “podem vir mas não podem ficar para o pequeno-almoço”, embora, de vez em quando até tenha acordado com eles em quartos estranhos de hotel.
Tu não és nenhum deles e contigo quero ser totalmente verdadeira: eu queria que viesses para a minha cama e que acordasses aqui todas as manhãs para o pequeno-almoço. Eu queria poder ir contigo ao cinema, ver filmes de mão dada contigo e comer pipocas. Eu queria viajar contigo, mostrar-te os lugares que conheço, conhecer os lugares que tu conheces, descobrir contigo lugares desconhecidos.
Estás todo o dia dentro de mim, és os meus olhos que de novo se espantam, os meus dedos que reaprendem a tactear. Assalta-me uma pergunta assustadora: e se eu nunca mais for capaz de viver sem ti?
Agora estou a lembrar-me dos momentos em que me sentei a olhar o canavial e me ocorreram fragmentos daquele belo texto, Nau Catrineta:
(…)
Mais enxergo três meninas
Debaixo dum laranjal
Uma sentada a coser
Outra na roca a fiar
(…)

E a outra?
Não me lembro.
Talvez seja eu
A escrever e a chorar.

*Texto inédito de Fragmentos de um discurso amoroso

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