Rui Verdasca

1. Como escreveu o extraordinário tradutor e professor Frederico Lourenço (doravante FL), na sua Nota Introdutória ao Evangelho segundo João, que consta do primeiro volume da sua magnífica tradução da Septuaginta (Bíblia Grega ou dos LXX): Para quem chega ao Evangelho segundo João após a leitura dos três Evangelhos sinópticos [Mateus, Marcos e Lucas], tudo o que vai encontrar agora criar-lhe-á uma forte sensação de originalidade. Esta advertência concretiza-se fielmente, porque o Evangelho segundo João é, verdadeiramente, original. Na nossa visão, este estranhamento deve-se a duas razões. A primeira, maioritariamente pessoal, prende-se com o que primeiro lemos: o princípio deste Evangelho que arrebata, desde logo, o leitor: No princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus, e Deus era o verbo (1:1). Parece-nos que o Evangelho poderia findar ali mesmo, dedicando-nos para o resto dos tempos à decifração dessa mesma frase, em busca do verdadeiro lógos (substantivo grego que, de forma alguma, é equiparável à tradução, em português, para Verbo). A reflexão é intensa, mas não propriamente dilacerante, pois o interesse permanece. Nesta sequência, escreve FL que João inicia o seu Evangelho com uma das mais intraduzíveis afirmações alguma vez registadas por meio da palavra escrita: uma afirmação de fulminante arrojo assertivo, de sublime alcance teológico, carregada de múltiplos e complexos sentidos. Por ser pessoal e menos pertinente no âmbito desta exposição, ficamo-nos por aqui. Passemos à segunda.
2. Esta caracteriza-se pela sua distinção e espanto, porquanto não é facilmente reparável para um leitor que leia os Evangelhos de seguida. Como nos ensina FL: [Nos Evangelhos], Marcos nunca usa a palavra «amor» (agápê); Mateus e Lucas só a utilizam uma vez cada, ao passo que João a emprega sete vezes. Além disso, João é também o que mais usa o verbo «amar» (agapân). Qual é, portanto, a ideia subjacente a esta incidência do vocábulo amor no Evangelho segundo João? Não sendo nós historiadores nem teólogos nem filólogos, a resposta é, praticamente, impossível, o que não deixa de permitir reflexões, quase sempre especulativas, muito interessantes. Parece-nos que em João há uma espécie de teologia do amor intricadamente ligada à ignorância dos homens face ao amor de Cristo. Contudo, nada podemos acertar quanto a este Evangelho, por este ser, portanto, extremamente distinto. Por exemplo, é o único Evangelho em que lemos um episódio em que Jesus chora (11:35); também é o único em que a mãe de Jesus não é nomeada, em que não há condenação do divórcio, em que está ausente a palavra euangélion («boa-nova»), entre muitas outras particularidades (todas mencionadas por FL).
3. O mais curioso, e mais comprovador, de ler João é que a sua leitura levou à redação de um dos mais fascinantes sermões do Padre António Vieira: o Sermão do Mandato, pregado na Capela Real, em Lisboa, no ano de 1645. Este sermão é mais um exercício teológico do que propriamente um texto explicitamente exortativo, como encontramos no Sermão de Santo António ou da Sexagésima. É, no entanto, assaz interessante pela capacidade especulativa que António Vieira reproduz, baseando-se numa construção, muitas vezes, densa e labiríntica. De todo o modo, o que se destaca, desde logo, são as antíteses. Como escreveu Ana Maria Martinho, [o] ponto de partida deste sermão baseia-se em associações e antíteses: conhecimento e ignorância; amor e conhecimento; amor e ignorância. Não obstante a densidade teológica do sermão, Vieira traça um dos mais belos textos escritos em português sobre o Evangelho segundo João. Veja-se esta passagem, presente na parte IX, em que se discute a perdão de Cristo na cruz para a ignorância dos homens: Chegou Cristo a diminuir o crédito de seu amor, para dissimular e encobrir os defeitos do nosso, e quis parecer menos amante, só para que nós parecêssemos menos ingratos (…) Porque não pode chegar a maior fineza a um amante, que estimar mais o crédito do seu amado que o crédito do seu amor. Exemplo deste primor, só no mesmo Cristo se pode achar.
4. Em jeito de conclusão, a ocorrência de agâpé em João é reveladora de um fascínio que resvala para qualquer leitor, permitindo uma leitura dos textos bíblicos que desperte o interesse, cuja manifestação não tem apenas de estar presente em cristãos ou católicos. Para finalizar, cito a passagem de João que o próprio Vieira citou, certamente da Vulgata, em 13:1, como epígrafe para o seu sermão: Sciens Jesus quia venit hora eius, ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, cum dilexisset suos, qui erant in mundo, in finem dilexit eos. Uma vez que a Vulgata é a tradução do texto grego, a Septuaginta, coloco a mesma passagem com a tradução direta do original por FL (que, mais uma vez, nos socorre): (…) Jesus soube que chegara a sua hora para sair deste mundo para o Pai e, tendo amado os seus neste mundo, amou-os até ao fim.

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