Ana Margarida Silva

São Valentim ou os equívocos de Cupido
(Linha de Apoio à Vítima: 116 006)

O Dia de São Valentim é uma data que nos vai relembrando que, por meados de fevereiro, a chama do Amor costuma bruxulear com mais intensidade, e que, pese embora o contexto de excecionalidade pandémica e o inerente isolamento, há sentimentos imutáveis, ainda que contraditórios, a povoar-nos as frágeis existências. Sempre assim foi e sempre assim será, creio. Passaremos, pois. Contudo, a chama da afeição etérea que ardilosamente irmana almas – ela - perdura, continua o seu murmúrio de antigamente, realiza a viagem no tempo e no espaço, fixando-se nos corações humanos e, no seu trânsito, encantará outros semelhantes a nós... Porém, estes tempos exigem-nos uma atenção redobrada, no que aos afetos diz respeito. Fixemo-nos, antes de mais, na noção de Amor. Sussurra-nos Luís de Camões, com todo o engenho estilístico e toda a justeza, no seu poema “O amor é um fogo que arde sem se ver” que sitiar os contornos deste sentimento, tão caro aos corações humanos, é empreitada deveras árdua e inexequível… Na época camoniana tal como hoje, difícil se torna clarificar os meandros labirínticos deste sentimento tão ambivalente, que tanto num momento suscita a vibração de todas as partículas corpóreas, como noutro oferece impiedosamente o padecimento, a ruína e a morte. Em boa verdade, a dificuldade de surpreender a substância do Amor, em muito, deve à ambiguidade de que se compõe o ser humano, pois cercar a noção de Amor é reconhecer-lhe a intensa energia de luz, o adocicado do mel e, simultaneamente, encontrar-lhe a sua antítese: o lastro do azedume, a feiura da negritude, a falsa letargia do fogo esmorecido. A chama é, pois, o alicerce das almas apaixonadas, o sentido que dá sentido à vida, ainda que possa subsistir o perigo da queimadura indelével… O tão necessário brasido que inflama o coração há de tornar-se labareda descontrolada e todo o ser se derrete: está instalada a paixão, germina o Amor. Acautele-se, contudo, o amador com os equívocos de Cupido… No rescaldo das eventuais rosas vermelhas e das açucaradas manifestações público-privadas, que por meados de fevereiro se fazem sentir com algum fervor, vêm-me à mente o contexto de pandemia e a inevitável agudização de risco de violência que recai sobre os grupos mais fragilizados: crianças, mulheres e idosos. O confinamento social imposto parece indicar que, não sendo o espaço exterior um local seguro, o recolhimento às quatro paredes do lar é garantia de isenção de perigo. No seu relatório de 2019, a APAV faz saber que registou um total de 11.676 vítimas de crime, sendo 80% do sexo feminino. Entre outros dados, indica que o local do crime mais referenciado é a residência partilhada pelo agressor e a vítima. Na verdade, as medidas de isolamento social empurraram as vítimas de violência doméstica para o convívio assíduo com o predador, que continua comodamente a exercer, com intenção e assimetricamente o seu poder patriarcal. A situação torna-se ainda mais perturbadora e alarmante por vários motivos: pela dificuldade que as vítimas terão, nestes tempos pandémicos, em apresentar denúncias, já que vigiadas pelo agressor que lhes controla todo e qualquer movimento facilitador de obtenção de auxílio; por se encontrarem afastadas de redes de apoio (familiares e amigos) e pela desatenção que a comunidade, agora atenta às questões sanitárias, pode revelar. A situação pandémica vivida concorre para o exacerbar desta pandemia oculta: o desânimo, a cessação de redes de socialização e de proteção, a perda de rendimentos e as dificuldades no acesso aos serviços de apoio concorrem para o incremento da violência sobre as mulheres. O alarme soa em Portugal e a nível mundial, já que inúmeros relatórios revelam um aumento significativo dos casos de violência doméstica em íntima ligação com a pandemia COVID-19. São muitas as razões que subjazem à permanência da vítima nas malhas de um relacionamento íntimo feito de abusos e violência: o crescente isolamento que o predador lhe impõe; o terror que inviabiliza o raciocínio certeiro; a manipulação por parte do agressor e a consequente culpabilização da própria vítima; a vergonha; a falta de autonomia financeira; a pressão social e, não menos importante, o Amor e a crença obstinada de que melhores dias virão e com eles a mudança. Pois que sepultar o Amor é a última das pretensões da vítima. Muitos corações femininos, ainda que pertencentes às pessoas mais cuidadosas e equilibradas, perdem a capacidade de discernir as características de um relacionamento maligno e resvalam por caminhos de culpa, desorientação, vulnerabilidade, grande sofrimento e solidão. É imperioso, por si e pelos filhos, que as vítimas mantidas reféns de labaredas patológicas, tenham presença de espírito e recursos que possibilitem abandonar o piromaníaco, acautelando-se para que não sejam transformadas num fracassado monte de fuligem. Não denunciar e não pedir ajuda é lavrar o caminho para perigos acrescidos: o inevitável aumento da violência, bem como o incremento do nível de gravidade e frequência das agressões, assim como a diminuição dos intervalos de “lua de mel”. Protelar a denúncia ou o pedido de auxílio é o caminho mais curto para um desfecho fatal. Evadir-se de um “fogo” psicótico ateado por um agressor não é tarefa fácil e daí a dificuldade que muitas vítimas enfrentam no processo de libertação: são necessários meios, uma valiosa rede de apoio e uma grande dose de coragem e clarividência. Porque sepultar definitivamente o Amor e seus equívocos custa e não significa que o caminho tido pela frente seja isento de complexidade. Porém, há que percorrer o caminho do luto, principalmente, quando há crianças e jovens envolvidos a quem se deve proteção, um Amor desmedido e a reconstrução do lar. Vem-me à mente o contributo de Abraham Maslow e sua teoria das hierarquias das necessidades humanas, constituída por cinco níveis. Receber e doar afeto – 3º patamar da pirâmide do psicólogo supracitado - é uma das prioridades que todo o ser humano experiencia e, não estando satisfeito este requisito, ao organismo humano, que tende a ascender ao motivo soberano da energia plena e sadia, fica inviabilizado o acesso aos patamares da estima e da autorrealização. Ao longo da sua existência, a tendência do organismo humano é o de progredir no modo como interage com o que o rodeia e com os outros, pelo que constitui necessidade fundamental a de se relacionar com os outros, por forma a edificar uma paisagem interior cognitiva e afetivamente equilibrada, na qual as emoções e o Amor ocupam um lugar de relevo. Autorrealizar-se é sinónimo de plenitude e de harmonização com o seu destino, constituindo-se o ímpeto que favorece a concretização de potencialidades, competências e talentos, sendo, no fundo, a meta que todo o ser humano anseia atingir ou, dito de outro modo, o vértice de uma pirâmide que muitos procuram alcançar, durante uma vida inteira e, ainda assim, não logram conquistar. E tudo por culpa do Amor ou, melhor dizendo, dos equívocos de Cupido.

 

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