Ipsis Verbis | Mariana Silva

Naquele início de ano de 2021, tudo tinha de mudar e para melhor. O oculista misterioso colocou, então, cuidadosamente os óculos na ponta do nariz, respirou fundo e aguardou o momento mágico. Porém, tudo quanto veio a seguir a suceder nada teve de admirável. Num piscar de olhos, encontrou-se imerso numa nova paisagem cuja aspereza e violência lhe fustigaram a alma. Habituado à compaixão de que o ser humano é capaz, tudo quanto agora desfilava diante do olhar lhe causava uma tremenda náusea…. Incrédulo, rodou sobre si e sentiu as pernas a desfalecerem-lhe: manifestantes, cegos de crueldade, insurgiam-se no meio de luzes natalícias; corpos débeis iam cobrindo o solo arenoso pela ausência de algumas pedras da calçada. Uma vermelhidão de sangue banhava aqui e ali os pés do Capitólio. Gritos de homens e mulheres ecoavam pelo espaço e os agentes, benfeitores, tentavam zelar a sua estimada democracia. Efetivamente, não havia como negar: estava na mais imponente avenida do mundo, assistindo a uma crise político-social e a uma guerra de um povo nascido no berço dos Direitos Humanos. Ao longe, em Nova Iorque, a estátua da Liberdade, símbolo de paz e harmonia, parecia ganhar vida e soçobrar levemente perante a catástrofe a que se via mergulhada a bela capital. Impotente, perante tanta atrocidade, o oculista permaneceu atónito e incapaz de realizar um movimento que fosse, pois, a nuvem densa que o envolveu deixou-o perturbado. O desespero inundou-lhe o coração e grossas lágrimas vieram banhar-lhe a vista. Como era possível, em pleno século XXI, num recanto dos mais apolíneos do planeta, haver vergonhosa brutalidade e ódio, num povo habituado à liberdade e regido pela máxima “E pluribus unum”? Como era possível existir tanta ira e destruição numa cidade conhecida mundialmente pelo seu brilho e magnífica História? Como era possível assistir a tamanha destruição de valores, numa revolta instigada por quem não os possui? Por que não se conformar com a justiça e permitir a transferência de poder político de uma forma pacífica e ordeira? Esgotado pela hostilidade, pelos gritos e pela atmosfera de retaliação, o oculista caiu de joelhos, dominado pelos soluços, a vista embaciou-se-lhe e, voltando os olhos para o Alto, implorou que alguma Divindade ouvisse a prece do seu rebanho e fizesse descer a Paz à Terra. Olhou, depois, para a pavorosa paisagem que o rodeava, dirigiu-se para junto de uma criança, consolou-a, levou-a para longe daquela nuvem de ímpeto que enchia o ar e prometeu-lhe que tudo iria correr bem, que, no final, o Bem iria prevalecer. Atirou os óculos para bem longe e, com o olhar vindo do coração, prometeu auxiliar aquela criança e todas quantas as que enfrentam os “monstros” que mandam no Mundo. Criaria um exército do Bem. Era essa a sua vontade: ver com os olhos do coração.

 

Foto fevereiro

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