Murmúrios fotográficos… |Ana Margarida Silva
Muitas foram as palavras candidatas a palavra do ano 2020, relembrando-nos o poder e riqueza que cada vocábulo carrega. Sem dúvida que ficaram expostas, como ferida aberta, as palavras que tantas vezes ouvimos e pronunciámos, em período pandémico. Nelas não me focarei, pois usámo-las diariamente e, por força desse uso, nelas estão impregnados o sofrimento, o desânimo, o luto, o abalo emocional que o novo contexto social e sanitário nos tem imposto. Não vou registá-las agora, nem tão pouco levar o leitor a sussurrá-las, pois temo-las ouvido e lido em demasia, pelo que estão puídas pelo uso e pouco valimento terá mirarmos tais carcaças lexicais e os respetivos conteúdos semânticos que nos têm amofinado a existência… Tais palavras, cujo tétrico rumorejar adivinhamos nas entrelinhas, ficam, decerto, tatuadas indelevelmente no olhar, nos lábios, no coração e na pele de todos e, em especial, das nossas crianças e dos nossos jovens, que as transportarão vida fora, lembrando-lhes o quão árdua lhes foi esta prova de vida, por tudo quanto perderam, enquanto cresciam. E bastaria ter-lhes sido sonegada a sua tranquilidade e a dos seus familiares para já ser uma perda a merecer sublinhado. Voltemos à palavra do ano, ela que na sua rica abundância semântica traduz como nenhuma outra o que foi a via-sacra percorrida em 2020. 2020 não deixa quaisquer resquícios de saudade, embora nunca nesse ano o afastamento físico e o coartar de liberdade de movimentação venham a ser esquecidos. Foi neste contexto de perda que o ser humano olhou, saudoso, para um tempo de valor, mas dissolvido nas memórias, em que privar de muito perto com familiares e amigos e circular livremente eram verdades inquestionáveis. A palavra “saudade” tornou-se a palavra de 2020, vincando um estado de alma generalizado e a certeza de que a vida, tal como os rios, jamais regressa atrás. O vocábulo “saudade”, composto por uma fonética adocicada, traz no ventre ecos da nossa portugalidade e do nosso destino, enquanto povo sempre em trânsito e dono de uma coragem indesmentível. Esta palavra criou, há longos séculos, raízes portuguesas na alma: falamos de um sentimento tipicamente ancorado à cultura portuguesa, em ligação estreita com a poesia de temática amorosa galaico-portuguesa. Impossível não a associar ao povo valente, que desbravou mares nunca antes conhecidos, deixando no cais filhos, noivas e mães saudosas. Associamo-la a um povo empobrecido, mas audaz, que levou consigo uma tempestade saudosa, quando se entregou ao fenómeno da emigração e do exílio, conhecendo dificuldades inerentes ao movimento de abandono do espaço materno e ao respetivo trajeto rumo ao território de acolhimento. Falamos de um sentimento que associamos ao funesto trânsito do período colonial português, fazendo ecoar a consciência de que ser português remete incontornavelmente para a ligação visceral a um território seduzido pelo murmúrio do mar e em perene movimento. Em 2020, a saudade tornou-se sentimento omnipresente que nos tem invadido os dias, pela ausência dos que perdemos e por tudo quanto cada um de nós deixou de realizar. Ficou um misto de sentimentos: a mágoa da impossibilidade de usufruir no presente e a esperança num deleite futuro. Ficou também a bagagem feita de lembranças: como que exilados num tempo disruptivo, iniciámos um processo viático contemplativo, pelo viés da memória, regressando à felicidade outrora vivida. Sem sair do lugar, o confinamento e a saudade foram a mola capaz de impulsionar uma viagem no tempo e no espaço. Pelo viés da memória, regressámos à liberdade que cada um usufruía no pretérito. A saudade andou paredes meias com a solidão: as ausências físicas que jamais recuperaremos; os longos abraços desejados, mas protelados para um tempo sem data marcada; os afetos melindrados pelo distanciamento; os sorrisos calados pelas máscaras; as viagens sonhadas, mas não concretizadas…. Deu-se a elisão do movimento a que cada um estava habituado e, resilientes, reconfigurámos o espaço pessoal e profissional. Porém, o ser humano alimenta-se do contacto com o Outro e a mobilidade modela a sua existência. Não percamos a esperança e sepultemos, com coragem, as palavras que nos travam o trânsito: que a resiliência acompanhe cada ser humano e que 2021 eleja “Liberdade” como a palavra do ano.