Viagem à janela
Ana Margarida Silva
Naquela delicada manhã, esculpidas a nitrato de prata, debruadas com algodão, gotejando ternura, penteava linhas que desalinhadas se amansavam no caixilho da página em branco, cobrindo-a com a lanugem matizada do real ficcionado…. Gemia o teclado impiedoso, zunindo-me aos ouvidos…. Lastimando-se, parecia cachorro do Hades, latindo e trocando-me as horas do dia e da noite. Sentado às portas do Inferno, estava certa de que com ele me levaria. Abandonei o inclemente teclado, recusei escutar as teclas rangentes, pois aninhar a escrita era em vão, já que da minha alma, brotavam rumores mil, inquietações várias e um fragor inaudível ancorara no cais do meu coração. Incapaz de retomar a redação a que me propusera, desviei o olhar da página aterradoramente nívea e conservei-o preso à janela, cobiçando a réstia de esperança que as ondas marinhas derramavam em redor. Lá fora, qual noite agasalhando a Terra com o seu manto de asa de corvo, o silêncio ensurdecedor há largas semanas calara o frémito urbano, permitindo, vindo da folhagem densa, a triunfante vibração de empolgados chilreios e o despertar apoteótico da natureza. Amanhecia e o céu ofertava uma visão cromática de cortar o fôlego. Alheio às dores da Humanidade, o Sol espreguiçava-se vagarosamente e aceitei o seu convite: contemplar o momento em que depositou, de mansinho, a claridade flavescente sobre todos os seres e todas as coisas. Com pés de veludo, dezembro aproximava-se, afinal e o matutino xaile celeste augurava boas promessas. Olhei em redor e pus-me a pensar que tamanha exibição etérea era digna de que todos os seres humanos renunciassem, por instantes, às suas tarefas irrelevantes para absorverem o ensinamento que um novo dia entregava. Levantar os olhos para um céu que amanhecesse, naquele ou noutro lugar do mundo, não teria, afinal, outro propósito que não fosse o de deixar deslumbrado quem o contemplasse e o de possibilitar, portanto, uma reflexão acerca da ínfima relevância do ser humano e seus afazeres, perante natureza tão poderosa. O meu pensamento, embora algo apaziguado pela criação pictórica a que assistira, ganhou súbitas feições de indócil viajante, partiu numa errância acelerada e não logrou aquietar os ardilosos burburinhos que ecoavam no meu interior. A Humanidade encontrava-se sitiada num cerco imposto por um adversário implacável e, confinada nos seus lares, a introspeção a que se via forçada solicitava-lhe gestos renovados de afeto e ponderação, exigia-lhe a reinvenção de um quotidiano, agora mais humilde e menos frenético, impondo-lhe o prudente equilíbrio e o olhar cuidador depositado no Outro. Paralisada a deslocação física e preso à imobilidade do lar, todo o ser humano, rendido ao sempiterno impulso irreprimível da partida, parecia prestes a entregar-se à circum-navegação do espaço interior, valorizando pequenos prazeres que considerara garantidos e dos quais se vira repentinamente privado. A tragédia fustigava o planeta e, reduzidos à sua pequenez, todos testemunhavam o luto a derramar-se, países fora, como irreprimível torrente. Contudo, pendurado à janela do confinamento, qualquer um facilmente observava o perpétuo movimento cíclico da natureza que, na sua dignidade de rainha impassível, continuava a entregar a sua lição de simplicidade: as árvores apresentavam sua sombra bruxuleante esticando seus alaranjados ramos, a brisa outonal amornava o ambiente, o arrulhar dos pombos harmonizava-se com o canto da pega-rabuda, a água do lago gargalhava e os aromas cítricos adocicavam a atmosfera, numa sinestesia inebriante. Na verdade, ali, para lá da vidraça, estava depositada a quietude que a alma sempre reclama: a natureza não cria o infértil ou o desnecessário… Tudo quanto a compõe é qualidade, beleza e ensinamento, sendo certo que ao solicitar a sensorialidade de quem a abarca com todos os sentidos, na sua forma plena de meditação, a natureza revela-se como resposta apaziguadora, como experiência interior que conduz à osmose com o cosmos… Sem sair do polido parapeito de pedra, namorando um pedaço de algodão níveo, que não prometia chuva, a minha viagem à janela prolongou-se, enquanto a página, que me propusera preencher, permanecia branca como cal, já de feições moribundas, a prenunciar a negritude do túmulo… Continuei a viagem, de olhos cravados no real…. Alheio à mensagem de esperança ofertada pela alvorada, o prédio ao lado do meu mantinha, aquela hora, um silêncio sepulcral. Lamentei a ausência … Aquele amanhecer era imperdível e pedia uma troca de palavras fraternas, quando a estranheza e o absurdo tomavam conta do quotidiano. Contemplei a calçada desguarnecida onde, outrora, se desenhavam as sombras de multidões esbaforidas entregues a correrias vãs. Já não ecoavam, avenida fora, os risos da juventude agora posta em retiro. Não se escutava qualquer rumor, a não ser o murmurejar das frondosas copas do parque. Um olhar redobrado de atenção revelou indesmentível a súbita melancolia que irrompeu pelas duas escolas, alastrando-se, caudalosa, pela paisagem em redor, fluindo, em torrente, lares adentro. À distância, o sobreiro e o eucalipto entreolhavam-se, de ramadas cabisbaixas. À sombra destes colossos, já não ressoavam os joviais risinhos dos namoricos, não ecoava o alvoroço juvenil, não deslizavam lágrimas ternas de paixão efémera. A proibição de circulação silenciara o roncar monótono dos motores e as animadas conversas de rua. Não emudecera, porém, o grasnar dos patos, que se pavoneavam livremente com a prole. A Mãe-Natureza seguia o seu curso, mantendo-se inabalável diante do que afligia a Humanidade. Embalada por um suave chilreio, não pude deixar de esboçar um sorriso: o tempo, tornado elástico, perdera toda a aceleração, instituindo-se como uma longa pausa, que cada um tinha de tricotar como lição de simplicidade. Quantas vezes no meio de atropelos e inabilidade, o ser humano corre atrás do tempo, querendo domá-lo, quando, na verdade, é consumido por ele? Do berço à tumba, a viagem, tantas vezes realizada apressada e desajeitadamente, é afinal efetivada, por todos, num ápice, como se entrando numa qualquer estação de metro saíssemos na seguinte. Repentinamente, um evento à escala planetária revelava que os relógios têm pouco valimento, que a ânsia de controlar os velozes ritmos diários faz resvalar tais urgências na falsa ilusão. Como negá-lo? A viagem empreendida por todos, rumo ao mesmo destino, é realizada como fósforo consumido pela chama, quando, na verdade, merece o deslumbramento por habitarmos um planeta que acolhe a todos, bem como a pausa tranquila para dele desfrutarmos. Subjugado pelo poder dos relógios e crente de que controlar o tempo e a sua própria vida está em seu poder, o ser humano caminha inexoravelmente rumo à perdição. Fechei os olhos e suspirei: enclausurados fisicamente na ínsula do lar, que tanto revela o medo e outras fissuras, como renova laços de união, os seres humanos experienciavam, em uníssono, uma viagem sem sair do lugar, obrigando-se a sentir o exílio dos que fogem da guerra, a reinventar gestos de proximidade e afeto, a valorizar verdades que julgavam adquiridas. Alguns, mercê de um inimigo invisível, davam-se agora conta da fragilidade da condição humana e procuravam trilhar a via-sacra da preparação, da renovação. Estava, porém, certa de que o retiro forçado, feito de vivências díspares, enredando-se nelas o medo e o sofrimento, formaria um chão, por vezes, infecundo. Desejei que fossem todos capazes de encarar a prova trazida como uma oportunidade para adocicar corações, ressuscitar no ser humano a lição da humildade, da entreajuda, da valorização do Outro no quotidiano, do reconhecimento de que só o momento presente importa e nele devemos investir, da importância de sulcarmos os dias com gentileza e cuidado para com o Outro, vislumbrando-o, lançando-lhe um olhar interpelativo e interpretativo, julgando a alteridade o avesso de si mesmo, engrandecendo-a. Naquela delicada manhã, o Sol docemente suavizava toda a miséria terrena e entregava a sua lição de vida a quem quisesse ler as suas linhas tão aprumadas e poderosas. Já de olhar preenchido pela deslumbrante manhã, pareceu-me escutar, vindo de trás, o leve segredar da lívida página a prometer nova viagem. Algo desconfiada, mirei o teclado já apaziguado e sentei-me.