Manuela Pires|Onde é que tu estavas no 25 de Abril?


Dava aulas de Matemática na Moita do Ribatejo, ao 3.ºano, atual 7.º ano de escolaridade. Como é que uma miúda de 21 anos estava a dar aulas? Na altura era assim. Morava no concelho e em setembro de 73, resolvi ir à escola da Moita ver se havia trabalho. Uma rapariga, pouco mais velha do que eu, estava a organizar o início do 3.º ciclo, no edifício do ciclo preparatório (o nosso 2.º ciclo). Entrevistava candidatos de várias áreas para lecionarem as disciplinas nas turmas do 7. º ano, primeiros alunos a ter oportunidade de ‘seguir’ estudos no seu concelho. Parece estranho? No distrito de Setúbal (e era assim em quase todos) só havia o Liceu na capital de distrito, duas ou três escolas comerciais e industriais em alguns concelhos e colégios particulares. Assim, em outubro era a única professora de Matemática a iniciar o 3.º ciclo. Grande responsabilidade, mas já tinha alguma experiência.
No antes do 25 de abril, pós cinzentismo salazarista e em plena ‘primavera’ marcelista, havia um fervilhar de experiências políticas (clandestinas, públicas e semipúblicas) e de experiências culturais. Tinha feito até ao 5.º ano (atual 9.º) num colégio em Mação, pacata vila da Beira Baixa, onde vivia, e em que o acontecimento cultural mais relevante era a passagem, uma vez por mês, da carrinha da Gulbenkian, onde requisitávamos livros para ler durante o mês. E mais não havia onde estudar mais. Por isso, em 68 desaguei na Margem Sul, a viver na Baixa da Banheira e a fazer uma viagem de 1 hora de comboio para ir para o liceu, em Setúbal, onde o Zeca Afonso era uma lenda, por ter lá dado aulas e ali viver. O comboio era uma escola. No Pinhal Novo, juntavam-se os ramais que vinham do Barreiro e do Montijo e nós, os filhos das pequenas burguesias locais e dos operários especializados da CUF e da CP, descobríamos Sartre e outras ideias.
Mas, o caldo cultural era no triângulo Barreiro, Baixa da Banheira, Alhos Vedros, com assento nas coletividades: no Ginásio, Alentejanos, Velhinha, projetavam-se e debatiam-se filmes, dinamizavam-se as bibliotecas, fazíamos feiras do livro, ouvíamos a música do Zeca e do Zé Mário Branco que nos chegava clandestinamente. Chegavam também rumores do maio de 68 em França, do Woodstock nos States, dos Beatles. Usava-se mini saia e aos 16 anos tive autorização para vestir, pela primeira vez, calças! Vivemos, como se fosse nosso, o 11 de setembro no Chile e a morte de Salvador Allende, a par dos teatros, que tanto nos visitavam como o Joaquim Benite do Grupo de Teatro de Campolide, que nos presenteou com a vida de D. Quixote de La Mancha, como íamos ao teatro a Lisboa. Uma vez até levámos uns cartazes ao peito a dizer: não vamos ao futebol, vamos ao teatro.


E dávamos aulas. Não eramos esquisitos, desde alfabetização pelo método Paulo Freire até à preparação para os exames do 5.º ano, marchava tudo. Eram turmas grandes de operários, escriturários, que nas coletividades faziam a sua preparação para fazerem os exames externos e melhorarem a situação profissional. Também criámos grupos mais pequenos, mais politizados, onde se lia à socapa, Marx, Lenine, Engels. Eu estudava a fundo os Princípios Fundamentais da Matemática de Bento de Jesus Caraça, na tentativa de encontrar uma forma mais socialista de trabalhar a Matemática, porque nada é neutro. Nas Faculdades, era a agitação completa: Associações de Estudantes, RGA, RIA, da minha Faculdade, na rua da Escola Politécnica, ao Rato, à cidade Universitária, Técnico, Economia ou Agronomia, andava-se bastante. E a descoberta do cinema… preços reduzidos nos estúdios, à quarta feira.
Parece uma festa? Era! Quer dizer, também tínhamos que estudar umas coisas, fazer exames e etc. Mas, os privilegiados que andavam no liceu entravam com alguma facilidade no curso de que gostavam, fosse Medicina, Engenharia ou Direito. Para dispensar dos exames de admissão à Faculdade, bastava ter nos exames, média de 14 e 14 nas duas nucleares. Nada como hoje.
Era uma festa, porque conquistámos o direito a ser livres de ideias e espírito, durante o fascismo e isso dava-nos poder. Claro que o poder político e o seu braço PIDE/DGS se incomodavam com estas pretensões, quereres e desafios também destes jovens. Se fazíamos manifestações, vinha a polícia de choque; se fazíamos reuniões gerais, a polícia invadia a faculdade. Se os rapazes universitários, que pediam adiamento da tropa (obrigatória) para terminar o curso, tinham algum papel visível nestas insubordinações eram mobilizados para a guerra nas colónias. Em 71/72 a polícia entrou na minha Faculdade tentando impedir a atividade associativa. Fiz alguns exames em julho, inter-rail pela Europa em Agosto, primeiro ano em que houve inter-rail), exames em setembro e não cheguei a iniciar as aulas do 3.º ano. Fui suspensa, eu e muitos outros, e impedida de entrar no edifício. Enquanto esperava pelo levantamento da suspensão, para além da participação na atividade estudantil, reuniões, assembleias, manifs, decidi ir trabalhar para a Plessey, em Moscavide, que fazia telefones. As operárias tinham que afinar os relés e faziam o mesmo movimento 8 horas por dia, tipo Tempos Modernos do Charlie Chaplin. Tive que arranjar um certificado da 4.ª classe para comprovar que sabia ler e escrever, pois não podia dizer a minha habilitação. Pensava eu e muitos outros estudantes que seria fácil fazer levantamentos de pessoas contra as condições de trabalho e o fascismo. Ingenuidade. Por mais panfletos subversivos que distribuíssemos à noite, não observava reações positivas ou negativas durante o dia. A preocupação era com o dia a dia, o ordenado insuficiente, o cansaço. E não havia conversas sobre as condições de trabalho, pelo menos não com qualquer pessoa, pois toda a gente sabia que a PIDE tinha informadores nas fábricas e não se falava. Que diferença com a agitação estudantil que estava ao rubro. Tinha a missão de tentar convencer algumas pessoas a ir à manifestação do 1.º de Maio de 73, convocada para o Rossio. Claro que nem coragem tive de falar abertamente no assunto e aí terminou a minha carreira como operária. No 1.º de Maio, faltei ao trabalho e fui para a concentração. Muita gente em grupos, pides infiltrados e na hora da manifestação arrancar, chegaram os carros de água da polícia e a polícia de choque com os cassetes e toda a gente a fugir para não ser presa. Fui para casa, quando saí do barco do Barreiro, grande agitação e soube que o meu irmão, mais velho cinco anos, tinha sido preso nessa madrugada, em casa. Na altura não havia telemóveis para sabermos as notícias na hora. Esta foi a última leva seletiva de prisões antes do 25 de abril. Nessa madrugada, foram 18 a serem presos no distrito de Setúbal, que foram para Caxias. Um deles foi o Zeca Afonso. O Regime tentava impedir a organização das listas da oposição democrática, CDE, para as eleições de outubro. Foi uma época de grande sofrimento familiar, os meus pais não percebiam nem aceitavam a nossa atividade e a aflição era muita, pela tortura que era infligida aos presos políticos.
Deixei Lisboa, informei a família que deixava a Faculdade, pois não tinha condições para estudar e fiquei por casa. A atividade política intensificou-se, as discussões sobre qual o caminho para a democracia, o comunismo, a validade dos regimes que tinham feito revoluções contra o capitalismo, o papel do PCP de larga influência naquela zona de forte implantação operária, tal como a Marinha Grande, os movimentos M.L., marxistas-leninistas, que pululavam na Europa e que em Portugal tinham bastante influência nas Faculdades, substituíam, pouco a pouco, a atividade essencialmente cultural que tínhamos.
Fui recrutada para os Comités Comunistas Revolucionários ML (os ML estavam na moda), tudo muito clandestino. E foi nesta altura que o 25 de abril aconteceu. Podiam ter avisado! Afinal tivemos uma trabalheira a preparar o que pensávamos seria o 1.º de Maio de 74 de oposição ao fascismo, imprimir comunicados e distribuí-los nos últimos dias antes do 25 de abril, sustos de morrer. Uma das minhas tarefas foi a distribuição de comunicados (dizíamos panfletos) junto de fábricas depois da Moita. Imaginem uma jovem professora que ia todos os dias para a escola na mesma camioneta (na altura dizia-se camioneta, eram os Belos, os Claras, a camioneta da carreira, não me lembro de quando se começou a dizer autocarro), sempre com o mesmo motorista e as mesmas pessoas. No dia da distribuição fui de madrugada, ainda noite, deixei passar a paragem da escola, tudo a olhar… Lá segui a pé, distribui os ditos e apanhei outra camioneta para a escola. Era uma clandestinidade bem ridícula. Parecia a guerra do Raul Solnado.
Ainda hoje tenho pena de não ter vivido o 25 de abril espontaneamente, aquela coisa de pôr cravos no cano das espingardas. Os sentimentos eram muito contraditórios. Estávamos em permanente tensão, a revolta militar podia sofrer retrocessos como outros que tinham acontecido. Tudo era muito frágil e podia seguir caminhos vários. Era preciso que as pessoas se manifestassem, saíssem, falassem sem medo, exigissem, gritassem. Os primeiros tempos foram assim. Exigir que todos os presos políticos saíssem da prisão, que a guerra colonial terminasse, fazer com que os trabalhadores reivindicassem, que os sindicatos se organizassem.
Casei numa 5º feira, no início de setembro de 74. De mini saia, sem véu, nem alianças, nem nome do marido, sem enxoval, nem a tradicional festa. Pelo civil. À tarde fui para uma manifestação. Havia muitas e uma grande medição de forças. Preparava-se a manifestação dita da maioria silenciosa para o final de setembro, pró regime fascista. Noites na rua e os meus poucos e queridos lençóis a servirem para fazer faixas que colocávamos na rua para alertar, alertar sempre… O que queria? Não sabia bem! Às vezes tinha receio, o fascismo foi derrotado, mas saberemos construir uma democracia e um regime mais justo e igualitário?
Continuei com a minha militância, fomos fundindo pequenos grupos ML e formámos a UDP. O partido mandou-me vir para a Marinha Grande com o Zé e a Mariana que tinha 1 ano e eu vim e fiquei.
Cada geração tem os seus desafios e na minha, estes foram os meus. Passados 45 anos, a democracia continua a ter de ser construída e praticada em cada dia. Com muitos desafios para os jovens de hoje, sobram desigualdades e um planeta em crise ambiental e humanitária.

 

 

 

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