Alice Marques |Onde é que tu estavas no 25 de Abril?

Pouco terá sobrevivido da emoção dos idos de Abril, para além da que a eloquência das líricas das canções revolucionárias ainda provoca na geração de então e nas que lhe sucederam nestes 45 anos. Por isso, começo esta viagem pela memória do 25 de Abril com as palavras de José Niza, na voz de Paulo de Carvalho, que foram a senha para pôr a revolução em marcha.
Amanheceu claro o dia 25 de Abril de 1974. A movimentada Rua dos Combatentes, em Coimbra, onde vivia desde Setembro de 1972, e um filho com 15 meses tiraram-me da cama antes das 8. Em casa não havia rádio nem televisão, aparelhos dos quais, sinceramente, não sentia a falta, pelo que, após as tarefas inerentes à minha condição de jovem mãe e estudante, desci as escadas, deixei a criança na porteira, a ama da sua primeira infância, e desci os Combatentes em direção à Rua do Brasil, levando comigo uma panela de sopa, para entregar em casa do Serafim, então jogador da Académica, cuja mulher, vítima de uma depressão crónica, tinha perdido o gosto por tudo e aguardava, semana a após semana, as minhas sopas, uns rissóis ou uns pasteis de bacalhau!
A vivermos com pouquíssimo dinheiro, (eu, o meu então marido e um filho) a nossa ida diária para a Universidade era a pé, subindo os Combatentes, cruzando os Arcos do Jardim, atravessando o largo da estátua de D. Dinis e separando-nos então, junto à entrada da Faculdade de Medicina, onde ele ficava, seguindo eu para a Faculdade de Letras onde frequentava o 1º ano do curso de história, depois de ter tentado, durante um ano, adaptar-me a uma linguagem que ainda hoje continuo a abominar: a do direito.
Nessa manhã de quinta feira, como habitualmente, já com vários quilómetros nas pernas, cheguei às Letras um pouco antes das 10. Desci ao anfiteatro V, ainda vazio, para uma aula de Civilização Romana. Aos poucos, o anfiteatro foi-se enchendo e, cerca das 10:15, o professor (cujo nome esqueci) subiu ao estrado para mais uma magistral aula sobre a superioridade da civilização romana! Estudante dedicada, eu bebia as palavras do professor, escrevia-as num caderno, quase sem falhas, para mais tarde, diligentemente, as copiar para várias colegas, usando três folhas de papel químico. Tinham decorrido poucos minutos de aula, quando um burburinho começou a circular. Mulheres e homens iam dizendo, à boca pequena: “diz que houve um golpe de estado”; “caiu o Marcelo Caetano”. Passei palavra para outra fila, sem consciência do que estava a dizer. Durou escassos segundos esta tímida circulação de informação. Sentada na primeira fila, a fraca figura da Miquelina transformou-se, toda ela, em voz, quando, alto e bom som, anunciou: Qual golpe de estado?! É uma revolução! Entreolharam-se os presentes, com ar de ignorantes, muitos deles, de incrédulos, outros. E a Miquelina, que ali mesmo se fizera porta voz da exigida indignação de meia centena de intelectuais, estudantes de história ainda por cima, saindo da bancada, dirige-se ao professor e, de dedo em riste, acusa: - “e você, seu reacionário, ainda não sabe nada da revolução que está a acontecer? Cesse esse seu saber baseado em fichas e vamos para a rua fazer a revolução. Como pode andar aqui há meses a entreter-nos com balelas sobre a superioridade da civilização romana, quando há tanta coisa importante e verdadeira para saber!? Temos de expulsar da universidade os fascistas como você! E depois voltando-se para nós: fora com ele! Fora com ele! Vamos sair nós. Lá fora a história está a acontecer e aqui só cheira a mofo fascista”! Recordo este discurso como se o tivesse ouvido ontem! Porque me marcou e, claro, também porque já o reproduzi, várias vezes.
O vozerio da turma foi-se tornando mais forte, atravessando o silêncio e saindo porta fora. O professor procurava, em vão, suster a turba, com a voz embargada por soluços: … “mas a civilização romana é a base da nossa história… eu pensava que vocês…”
Deu-me pena aquele homem, já velho, de aspeto venerando, sem conseguir conter as lágrimas em frente a um bando de miúdos. Apeteceu-me agarrar a Miquelina e estrafegá-la. Como ousava aquela cinco reis de gente falar assim a um professor?! E onde tinha ela ido buscar aquela força e aquele palavreado?
Vencida pela evidência de que não haveria mais aula, saí também. No átrio e na escadaria, centenas de estudantes, eufóricos, abraçavam-se e davam vivas! Senti-me a pessoa mais estúpida do mundo porque não percebia o que festejavam. Fiquei por ali até à hora de almoço, a tentar tirar a limpo, com os colegas mais chegados, se era um golpe de estado ou uma revolução, a fazer de conta que sabia a diferença e as implicações do facto.
Chegada a casa, fui ao quarto, levantei o colchão da cama do meu filho e li o título do livro que há meses ali guardava, depois do sábio conselho, que a Luísa, então namorada do meu cunhado, me tinha dado: O Estado e Revolução, cujo autor, Lenine, era, para mim, um desconhecido. Depois de algumas tentativas de entender aquela linguagem, eu acabara por desistir de me “auto-iniciar ao marxismo-leninismo”, objetivo expresso pela Luísa, na hora em que me passou o livro para as mãos, com a recomendação: “tem cuidado, não mostres este livro a ninguém em quem não confies”.
Talvez acalentando uma vaga esperança de que aquela manhã de Abril pudesse ter-me trazido uma luz de entendimento, que pudesse ajudar-me a tirar a limpo se o que acontecera naquela madrugada era um golpe de estado ou uma revolução, passei parte da tarde a ler o livro.
Sobre o resto desse ano, a memória é vaga. Não tivemos mais aulas, todos tivemos passagem administrativa. Havia uma revolução para fazer, na rua e na universidade. Era preciso sanear todos os fascistas! A minha rotina diária passou a ser nos plenários, a colar e empunhar cartazes, ir às manifs e ler pequenos livros, saídos de editoras de vão de escada, que se vendiam em bancas improvisadas por toda a universidade. Ah! Arranjei dinheiro para comprar um rádio de pilhas e passei a ir ao café Samambaia, no bairro Norton de Matos, para devorar as “notícias” que muitas vezes tinham o título de “Comunicado”. Formei-me à pressa em marxismo leninismo. Teve de ser. De que outra forma poderia sentar-me à mesa do café com intelectuais de esquerda?!
Quando, em outubro, voltei à Faculdade de Letras, tinha um horário em que os nomes das “cadeiras” já não me eram de todo estranhos, (por exemplo, Introdução ao materialismo dialético) e cujos professores gozavam da fama de serem reputados intelectuais marxistas-leninistas! A primeira aula do 2º ano, curiosamente chamado ano propedêutico, foi justamente dessa cadeira e foi uma prova de fogo. O professor escreveu no quadro: “ até hoje os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo, mas o que é preciso é transformá-lo” e pediu que a comentássemos. O silêncio absoluto que se seguiu, até que o professor voltasse a usar da palavra, provava inequivocamente que éramos um bando de ignorantes em matéria de materialismo dialético e que ele tinha um árduo trabalho pela frente. E teve. Mas com bons resultados. No final de 1974, concorri para dar aulas e fui parar a Rio Maior, onde iniciei a minha carreira de professora, no dia 6 de janeiro de 1975. Entre outras disciplinas, neste tempo em que foi preciso transformar a habilitação para ser professor/a em “quem sabe ler, vai ensinar”, ensinei Introdução à Política, que substituía a mofenta Organização Política e Administrativa da Nação. Tornei-me de esquerda, às vezes esquerdista, militei no Partido Comunista. Nesse ano, li todos os discursos revolucionários do camarada Álvaro Cunhal, publicados no Avante, e nesse verão quente, quando atacaram as sedes dos partidos da esquerda, olhando o monte de livros, cartazes e jornais que ardiam no largo, chorei, abraçada ao Manel Barbosa, da Frente Socialista Revolucionária: “queimaram as fotos do grande Estaline”!
Os quarenta e tal anos seguintes passaram num piscar de olhos (torna-se um cliché dizer isto quando passamos dos quarenta, mas eu já passei há muito!). E porque nunca fui mulher de levar desaforo para casa, há uns anos, talvez uma dezena ou uma dúzia, numa festa de fim de carreira do meu mais querido professor de Coimbra (que, não por acaso, é agora Jornalista Convidado do P&V, José d’Encarnação) encontrei o professor que inteligentemente me iniciou no marxismo e tanto contribuiu para que eu perceba hoje, melhor do que nunca, que enquanto houver capitalismo haverá exploração.
Fui cumprimentá-lo. E disse-lhe, de supetão: “ doutor, você infernizou a minha vida e quero agradecer-lhe por isso!” E ele, olhando-me intrigado foi dizendo, atabalhoadamente… - “mas quem é você? Porquê? Não estou a reconhecê-la…”.
- “Levaria muitas horas a explicar-lhe” - retorqui eu, mortinha por que ele me convidasse a sentar.
- “Pois sente-se aqui. Temos a noite toda para isso”.
E assim foi. Eram quase duas da manhã, a sala do restaurante tinha-se esvaziado há muito, quando os empregados, educadamente, vieram lembrar-nos que já tinha saído toda a gente, eram duas da manhã e queriam fechar.
Deixamos o restaurante e fomos para um bar próximo, onde, durante mais três horas, continuamos uma conversa redonda, que de vez em quando voltava àquela manhã em que a sua pergunta desafiadora determinou a minha vida: “até hoje os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo, mas o que é preciso é transformá-lo”.
Ao professor Fernando Catroga, brilhante historiador, cujos livros, que gentilmente me oferece, (como se a sua tarefa devesse ainda continuar), têm sido uma inspiração, um agradecimento por me lembrar sempre que a revolução é uma tarefa coletiva e que cada um de nós é o restolho do tempo.

 

 

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