Diogo Heleno
A propósito da leitura de "Confissões" de Santo Agostinho, o Diogo decidiu escrever as "Confissões de Santa Luzia". Como o próprio refere, decidiu fazê-lo "de uma forma um pouco sarcástica e empregando algum humor". Luzia é uma figura que se está a compor e é uma "criatura" que, de modo autónomo, se está a afirmar perante o seu "criador". Para ler estas confissões, que serão indagações e perplexidades de Luzia, o leitor terá de colocar o filtro do sarcasmo e da interleitura para, juntamente com a personagem, poder deambular (mergulhar?) no seu complexo discurso do pensamento.
A professora, Sofia Duarte
Livro Primeiro
E se o crente só crê no que lhe é proveitoso, eis a subversão do Mundo. Transforma-se o credo no crente. E do crente nada mais se espera do que se justificar no credo.
Ouvi-me, ó meu Deus! Ai dos pecados dos Homens! É uma mulher, «eu, pó e cinzas », que assim, neste pranto, se dirige a Vós. Compadecei-Vos, Senhor, pois sois Aquele que a criou e não aos seus pecados. Confessar-Vos-ei, Senhor do Céu e da Terra, louvando-Vos e falando à Vossa Misericórdia, procurando o caminho da Salvação. Começarei não pela alvura da vida, como manda a lei natural, mas por aquele lugar que supera a cessação inrestaurável. Eis que em Siracusa Vós me impelistes a dizer orações junto ao sepulcro de Santa Águeda de Palermo. Ali sobre as lajes, viestes ao meu coração e inebriastes minha alma, tomada em êxtase. Vi a imagem da Virgem Santíssima e dos Catorze Santos Auxiliares, todos juntos, todos um, à vez proferindo a Palavra do Senhor, plena de Amor e de Verdade. Sobre eles, Vós derramáveis o Espírito Santo. Mas criaste-o excessivamente resplandecente, distingui-los não pude, porque a santa lâmpada atrás deles radicava, terminando eu por rogar a Vós que a Bem-Aventurada Assembleia não me requeresse a nomeação de cada uma daquelas sombras, que precariamente ouvia, pois dizia súplicas para que as respostas do um-dó-li-tá não saíssem transviadas, sob pena de indicar um apelido ao santo a que não pertencia. Mas, ó meu Deus, ó Conhecedor de mim mesmo, ó Artificie do mundo, como pude eu incorrer em tamanha falta? Violei a relação que existia entre Vós e eu mesma, quando, ao despertar daquele arrebatamento, tomada pelo pecado diabólico do ócio, não entoei “Amen” ao Nosso Senhor Jesus Cristo. Amar-Vos-ei, Senhor, dar-Vos-ei graças, pois perdoastes ações tão más e tão indignas e impelistes-me nesse momento a tomar a resolução de rejeitar o credo aos ídolos da mitologia impura. Nesse dia, consagrei-me a Vós, Senhor Jesus, e ofereci-me como Vossa eterna serva, ávida por adorá-Lo sempre. E… ó eterna Glória, ó Luz rutilante, ó Éter lustral, ó Beleza, onde Vos encontrei para Vos poder amar tanto e tão convulsivamente? Que mereci eu para de Vós receber a bênção de Vos mostrardes a meus olhos? Sois sumamente bom, porque piedoso. E piedade foi o que me mostrastes quando Diocleciano decidiu pelo meu martírio depois de tentar imprimir-me a conversão. Estava lá minha mãe, de chamelote, curvada a seus pés, pedindo com instância ao tirano que o não decidisse, chamando-me de “emanação da Providência” e de “inócua criatura obediente”. Obediente sim, mas a Vós, ó meu Deus. E nessa pausa que se seguiu ao pranto de minha mãe, eu já escutava os querubins e via ao seu lado, nova aparição, Nossa Senhora, Mãe de Jesus, e Vo-lo agradeci por acompanhardes esta Tua vassala em instante tão doloso. A Virgem Santíssima ali se quedava, novamente, rodeada por anjos, de tez alvíssima, olhar grave e piedoso a mim se dirigia, véu branquíssimo que lhe cobria levemente o gesto, mãos suaves como a porcelana, aproximadas em jeito de oração, imaculadas, e a capa de azul celeste que lhe cobria os ombros possuía um brilho adamantino, em tudo semelhante à seiva que o é desde o primeiro dia, e modela os rochedos e, aspergida, mata a sede à «corça que anseia », penetra o solo e é gérmen, e vida e pureza. Era aquele tecido uma cristalização diáfana, a mais perfeita materialização da ablução, pena estar puído na bainha e ter aquela mancha na extremidade, porventura por muito a usar e por Lhe faltar tempo de a percolar, tamanha a azáfama que deve ser ouvir tanta promessa e tanto Salve Regina. De todo o modo, recuo às Confissões a que me proponho, não por escassez de apetência em Vos louvar e Vos agradecer, mas por procurar que recebeis este sacrifício, por meio do ministério da minha língua, por Vós criada e que impelistes a confessar o Vosso nome. Sarai todos os meus ossos e que eles clamem: «Senhor, quem há semelhante a Vós? ». Aqui exponho e expio os meus pecados, na tentativa de me redimir, pois «dos pecadores está longe a salvação». Outrossim, o maior daqueles ainda não referi eu. Ah! Miserável de mim! E fraca! Recebei-me na fé e curai-me da minha jactância. É que me dizem sagrada, e alvo de veneração, me põem em charolas, e andam com o peso das pratas e das alvenarias aos ombros, me representam, os santeiros, os iconógrafos, com os olhos de mim despegados. E tudo isto porque curo o negrume da visão! De que vale me porem nos altares, nos estrados, nos púlpitos, nos genuflexórios, nos órgãos, nos coros, nos assentos, nas naves, nas câmaras, nas capelas, nas sacristias, nas criptas, nos batistérios, nos nichos, se só sei curar a cegueira da vista, quando urge curar a cegueira da alma!? De que vale me porem nas preces, nas rezas, nas orações, nos sermões, nos louvores, nas laudes, nos cânticos, nos salmos, nos hinos, nos motetes, nas réquias, nas missas, se me divulgam como curandeira de lesões do corpo, de achaques, quando há tanta moléstia nessas consciências, tantos cegos da vista que habitam no Bem e muitos mais sadios que habitam na Putrefação!? E enquanto dos primeiros só uma espécie há, dos últimos existe abundância de categorias. E não me refiro aos lascivos, aos ociosos, aos apóstatas, gulosos ou adúlteros, mas sim àqueles que reptam. Ele é demagogos, déspotas, os conformados, os que trocam o essencial pela constatação e fruição da frivolidade, os desatentos aos que os rodeiam, os ignorantes, os cegos! E a estes aparecem-lhes outros Catorze: São Materialismo, Santa Egolatria, Madre Superficialidade, Soror Irresponsabilidade, Beata Indolência, Santo Populismo, Reverendíssima Indiferença, Irmã Inscícia, Frei Excesso, Superiora Inação, Todo-O-Poderoso Vilipêndio, Bem-aventurada Negligência, Preste Falsidade, Presbítera Hipocrisia. Quando é que alumiar as retinas se sobrepôs à necessidade de corrigir a alma que antes luzia? Luz ia, luz foi-se, reina a escuridão. Luzia, luz foi-se, o que podes tu fazer? Se só tens remédio para maleitas e indisposições físicas, o que fazes no andor vacilante? Ajudai-me, Senhor! Mas, por Deus, o que digo eu!? «O que foi feito se fará novamente, nada há de novo debaixo do sol »! E que sou eu? Mera serva, Senhor Omnisciente. Deus super omnia . Se assim é, de que vale intentar esta empresa? Prudente será deixá-lo para o Sumo-Suserano. Ó meu Deus, se tão evidente é a Tua Omnipotência, porque me fizeste não santa, mas oftalmologista!?
In nomine patris et filii et spiritus sancti,
Livro Segundo
«Benedixitque illis Deus et ait crescite et multiplicamini et replete terram et subicite eam et dominamini piscibus maris et volatilibus cæli et universis animantibus quæ moventur super terram»
«Ó Senhor, eu sou Voss[a] serv[a], sim, Voss[a] serv[a] e filh[a] de Vossa escrava. Quebrastes as minhas cadeias; sacrificar-Vos-ei uma vítima de louvor» . Meu Amor por Vós é aderente e tomado de tal tenacidade que resiste a qualquer tentativa de rutura. Quebrem-se-me as tíbias, ó meu Deus, para que não possa mais andar. Arranquem-se-me as maxilas, ó meu Deus, para que não possa mais falar. Perfurem-se-me as veias, ó meu Deus, para que não possa mais existir. E nesta falta de andamento e de fala e de existência, habito em Vós e por Vós me encho de júbilo. Ouvi agora benignamente esta prédica que a Vós se dirige, porque a ignomínia não se esgotou no que já disse, antes jaz putrescente nesta minh’alma sequiosa de imaculabilidade. Prosseguirei, pois, com as minhas húmiles Confissões. E neste momento de resolução, tacteio o meu coração e lhe reconheço o Amor fecundo por Nosso Senhor Jesus Cristo em cada uma das suas fibras. Tangei-mas, ó meu Deus, neste instante de mortificação cavada até ao âmago pelágico desta minha essência, e fazei delas suave melodia que desperte os Homens deste malfadado sono e os restitua à vigília, tal qual David, que tangendo, por seu turno, sua lira, expurgava Saúl de seus malignos espíritos. Que eu seja Vossa lira e que o canto que dela emane seja pleno de complacência e Vos louve segundo a Vossa imensidão, grandiosamente, com tamanha veemência que supere em intensão a de todas as canoras trombetas, sonoros címbalos, ressonantes saltérios, cítaras, frautas, sinos, aulos, tambores! Um grito de aleluia expedido ao mais elevado firmamento! Dest’arte, iniciarei minha confidência. Por Vós guiada fui até à longínqua Nicomédia, penitenciando durante a longa peregrinação, na tentativa de fazer luzir da minha comorbidade clareira imensa que me livrasse da vérmina de que padecia. E, ó meu Deus!, quanto Vos agradece esta Vossa serva por nunca me faltardes, mesmo naquelas asfixiantes e calcinadoras Horas Sextas de verão! Orava perseverantemente, pelas folhagens desfalecidas, pelas crespas sarças, ásperos cardos e abrolhais, pelos arbustos que inclinavam as sumidades ante o Sol férvido, rememorando-me dos Vossos mistérios e da paixão de Cristo, apropriando-me da fogosidade do astro e transformando-a em fogosidade religiosa. E nesses momentos de êxtase, olhando a espaços aquilo que me circunscrevia, não eram rochedos, nem arroios, nem boninas o que tão comoventemente observava, mas sim obras de Deus, obras Vossas, penetradas pela Vossa claridade! Só então compreendi quão parasíticos são os Homens, e eu, meu Deus, e eu! Pois quê? É que dissestes ao dia sexto que o Homem dominasse as restantes criaturas, mas não seria esse domínio para ser praticado da mesma forma com que nos dominais, caridosa e benevolentemente? Disse Jesus: iam non dico vos servos quia servus nescit quid facit dominus eius vos autem dixi amicos quia omnia quaecumque audivi a Patre meo nota feci vobis . Se assim é, não deveria o Homem agir perante a Vossa Criação exercendo domínio amical, zeloso em desbastar as ramudas cepas e lhes conservar os pedúnculos cárpeos, em vez de consumir essa mesma cepa? Sim, porque os Homens não se saciam com os carpos somente, senão que devoram tudo o que lhe surja, os pedúnculos, as hastes, as estirpes, a seiva, os seixos, o que os rodeia, e o que mais além se figura. Devoram o horto, a leiva inteira, o latifúndio e tudo o que lhes é menor e subordinado, os currais, os terreiros, os eirados, as varas, rebanhos, cardumes, os próprios hortelões, rendeiros, granjeiros! Devoram tudo e os da própria qualidade. E de todo este férculo orgíaco, é o mesmo Homem que, ébrio, repousa num encosto, eructando ruidosamente, regurgita a matéria putrefacta, sente-lhe o acre sulfúrico, a emanação excrementícia, os glóbulos pastosos por digerir cuja configuração tão prazerosamente se demora em adivinhar serpejando a língua pelo palato, carcomido pelos ácidos e pelos vermes que se locomovem em espasmos, mais perturbados pela repugnante atmosfera fecal em que nadam que o dono daquela boca, que agora desperta deste enlevo (um fedor lhe atiçou a glutonia), sonda o mento peludo, encontra uma falange olvidada, observa-a como que intentando se lembrar a quem já pertencera, perde-se no pensamento, já não lhe importa, esgravata com a unha agarrada àquele osso os dentes imundos que ainda retém, rói o restante, e num ímpeto fulminante de ânimo e glória, num derrame de gáudio supremo, levanta-se e, ah meu Deus!, ergue as mãos aos céus, profere «Abençoai este alimento que tomo» e engole tudo, empurrando aquele visco até às entranhas sedentas! Afasta-se sem tardança daquele local (para o mais comum dos observadores nada acontecera), espera-o nova refeição, que isto é gente de muito alimento. Isto, meu Deus, é a verdadeira gula! A dos que não têm verdadeira boca!, porque verdadeira é aquela que profere o Verbo, espargindo a Palavra do Senhor e fazendo-o à Vossa semelhança! Não mais que cavidades distópicas são aquelas que proferem a repulsa e estabelecem o domínio por soberba subordinação dos corpos que só a Vós pertencem, autêntica emulação de cecos.
E eu, meu Deus, eu sou implicada!, porque quando descasco um aromático pomo ou uma doce laranja, ao lhe tirar esses invólucros e essas túnicas orgânicas, faço-o desinteressada e precipitadamente como se fosse condição imanente daqueles frutos o terem sido criados para meu proveito e divididos convenientemente em gomos para mais fácil ser o seu consumo. Mas facilis est descensus averni , fácil é trilhar o caminho do mal. Não será aquela minha atitude um princípio para atitudes mais graves e mais abjetas, meu Deus? Tal qual quando sacudimos um qualquer inseto alado que nos incomode, quando calcamos as lâminas das ervas rasteiras, isso não será a causa primeva para o Homem manipular as Vossas criaturas como se a ele pertencessem? Não será isto a causa das gaiolas, das cadeias, das piozes, das trelas, dos jugos, das esporas? Não digo que objetos tais sejam perdição, mas a intenção, meu Deus, a intenção com que os manuseiam é que encerra a vil baixeza – a de o Homem tudo querer devorar, (de novo) desinteressada e precipitadamente. E o mais miserável, o mais pungente, é que o que o mesmo Homem traga mais frequentemente, e num só gole, são outros Homens, outros a que não me refiro nestas Confissões, porque imerecedores de repreensão, porque flébeis e, ainda assim, humildes e temerosos a Vós – os mais puros cristãos, os únicos a que é digno atribuir tal designação. De todo o modo, enfermidades do ventre, boca, intestinos e coisas que tais estão sob o ministério de Santo Erasmo, ou São Elmo (como aprouver ao freguês), sempre em frente, direita. Mas ó meu Deus!, eu Vos peço, ó Criador do Céu e da Terra, mitigai esta minha dor, lenificai esta minha perversão, pois pensei ter senhorio deste pó e destas lágrimas e deste mundo à vista e, por isso, os usei sem a morabeza com que Vós me criastes e a todas as coisas! Animai-me de confiança, porque não me reconheço em Luzia, pois me parece que luzir nunca fui capaz! Ó meu Deus, santificai estes ossos, estes humores, estes olhos, este ventre!... Diga? Desculpe? Ah, muito bem, deixe só… Muito bem, pode dizer… nove, cinco, um, cinco, zero, oito, zero, três… repita só o último, se faz favor…um? Muito bem… Diga-me só uma coisa, Elmo leva H?