M … de Mulheres | Diogo Heleno
Ao leitor: Abrange-te do teatro épico, em bebedeira de Brecht. Exuma, retira da leitura os cadáveres ou corolas olorosas que dela surgem. Fá-lo, fá-lo urgentemente numa deflagração tal qual O’Neil; «Não te deixes enrolar!/És tu quem tem de pagar…/Põe o dedo em cada letra./Pergunta: Por que está qui?». Da interrogação sempre surge alguma coisa, e da crítica o despoletar da gradação que muda, gradação de convicções, entenda-se, o câmbio de opinião, a mudança de ótica, se me faço perceber. Urge questionar a escrita, que é várias, tentar percebê-la e insistirmos em não nos abstermos de a compreender. Bem sabemos da locução latina duas vezes certa nec semper lilia florent, nem sempre os lírios florescem, mas da ausência do florir não significa desvincularmo-nos do que nos é direito, não nos devemos alienar da dádiva da palavra, porque, das demais espécies sensíveis, somos sucesso elementar no domínio do discurso. Elementary, diria Holmes. É o que creio, mera confidência, vale o que vale.
Mas disto nada faria sentido sem assunto onde se pôr o dedo ou letra que desencadeasse a apreciação cáustica, sem a energia vinda de lugar incerto empenhada na crítica que propus, cafeína por alimentar uma raiva convidada. Daí que venha o seguinte:
Segue de camisa cerúlea, em passo nervoso e firme (se é que a antítese não se anula a si mesma), não fosse a cidade estrangeira e pouco familiar (e aqui, leitor, leitora, ignore-se o erro de chamar estrangeira à cidade quando quem se deslocou a ela foi a mulher de camisa cerúlea, sendo rigorosamente ela a forasteira, iraniana, e não a cidade, que não teve voto quanto à deslocação alheia), pega suavemente na caixa aberta forrada a veludo e dentro dela o medalhão dourado (que aqui chamam Fields Medal), frente a um auditório que Seoul estará pouco habituada a ver, o Congresso Internacional da IMU, leia-se International Mathematical Union. A mulher? Maryam Mirzakhani, única mulher laureada pela Fields Medal e primeira da nação a receber o galardão. O motivo? Um percurso notável enquanto matemática influente e responsável por inúmeras investigações no domínio da Teoria de Teichmüller e Teoria Ergódica, Geometria Hiperbólica e Simplética. O tempo e o espaço? 13 de agosto de 2014, Coreia do Sul, trinta e sete anos que distam do dia 12 de maio de 1977 em que nasceu, seis mil seiscentos e cinquenta e três quilómetros que a separam da cidade-natal, Teerão.
Composto o lead, nutro ainda o leitor ou leitora com mais que se lhe diga, pois pretendo dele e dela só o melhor, dou-lhe o que necessitar: se vitamina para altura de resfriado, se farinha lacto-búlgara para a fadiga, se mercurocromo na ocasião de golpe. Maryam contribuiu grandemente para o avanço científico, para a confirmação de teorias preexistentes, e no momento da entrega da Fields Medal, o professor da Universidade de Wisconsin-Madison Jordan Ellenberg referiu-se à sua pesquisa comparando-a a uma mesa de bilhar, e da dinâmica que possui, não das esferas a rolar na sua superfície, mas das transformações que a própria mesa experimenta, ao longo do tempo e de forma ordenada, “como um planeta estranho pelo universo de todas as mesas possíveis”.
Viveu para e na Matemática, por ela e dela e por tantos outros que beneficiaram com o seu trabalho, vanguarda expansionista que desbravou bosque tão denso e umbroso quanto a Matemática e Física modernas. E para isso muito contribuiu o espírito crítico, a temperança, que não sem razão é chamada virtude, o “não se deixar enrolar” e o reconhecer na Matemática uma oportunidade para ler, sim!, ler, ler a Matemática, discerni-la mesmo que na sua faceta menos tangível e mais abstrata. Maryam era portanto uma matemática total, épica e genial, diria, digna de dramaturgia brechtiana (de novo a referência).
Por fim, acabar por onde tudo tem termo. A mulher? M. Mirzakhani, que acabou por falecer aos 40 anos de idade. O tempo e o espaço? 14 de julho de 2017, Estados Unidos da América, onde viveu praticamente toda a vida como investigadora e lente na Universidade de Stanford. O motivo? Um cancro da mama? Não! Simplesmente porque não só em algumas ocasiões os lírios não florescem, nec semper lilia florent, disse-o eu no começo, como também por vezes são colhidos prematuramente.
Et finalem, como não poderia deixar de ser.