Débora Francisco, 12º I


Nas terras onde o sol nunca se põe, Hela não dorme nem um segundo. Com o eterno medo daquilo que pode estar gravado no interior das suas pálpebras, esta mulher permite-se viajar pela sua existência sem recarregar energias, naquilo que se pode considerar um crime absoluto à raça humana. Como será possível crer tanto num mistério que acabamos por nos tornar nele? Nas terras onde o sol nunca se põe, Hela dança descalça na relva. As pequenas margaridas em que tropeça sem qualquer má intenção condizem com o seu vestido, um lençol de seda branca com pequenos sóis de um bravo amarelo. O tecido começa a meio do seu peito, revelando ombros pálidos e sardentos, cobre os seus braços em mangas esvoaçantes e acaba ligeiramente antes do seu joelho. Traços negros adornam a parte inferior exposta das suas pernas, réplicas do seu cabelo preto e escorrido, mas ela não se importa porque o mundo é seu e ninguém a pode julgar. Nas terras onde o sol nunca se põe, Hela é a única que presenciou o seu dia de ontem (se é que ele existiu propriamente). O sol e a lua estão sempre visíveis naquilo que pudemos considerar o céu: uma tela que mistura lilases e azuis variados, sem limite no espectro de intensidade destas cores. A construção social que é o tempo não tem espaço para forçar a sua importância neste mundo, que pertence somente a uma mulher, deusa da sua própria terra. Nas terras onde o sol nunca se põe, Hela conta apenas no oxigénio para a consolar na sua solidão. O ar raramente arrefece à sua volta, sendo que ela própria tem a capacidade de o manipular, mas nos “dias” em que as temperaturas descem para os graus negativos, tortura é uma ideia que não escapa ao seu cérebro. Nada ao seu redor tem consistência física suficiente para a abraçar, acalmar o que lhe perturba a alma. O único consolo possível é unir-se aos campos infinitos que compõem o seu mundo, rebolar na relva e nas margaridas até conseguir extrair o mal dentro de si. No entanto, há “dias” em que Hela preferia não governar esta sua terra. Por vezes, a mistura dos lilases e dos azuis enjoa-a profundamente, e ela reza a si própria pela capacidade de produzir uns vermelhos e laranjas para aquecer os céus. Com um pouco de força de vontade, as tintas escorrem por entre os seus dedos e criam poças aos seus pés em alegria incontrolável- a magia acaba por se revelar temporária e a única solução é imaginar infinitamente, até a paixão pelos tons frios a assombrar novamente. No entanto, há “dias” em que Hela questiona o que lhe falta nesta sua terra. Talvez seja um pouco mais de calor, talvez seja mesmo um pouco mais de amor; aquilo que ela sente pelas flores que continuadamente pisa sem intenção não é suficiente. A hipótese mais forte na sua mente é a ausência de alguém que lhe escreva poemas sobre o seu valor, que os recite enquanto se sentam juntos debaixo da tela enquanto ela finalmente descai e se torna num céu real. Nessas épocas, o seu coração aperta com a sensação de nunca ter sido amada. O medo de ser abandonada torna-se repentinamente algo físico, palpável na tensão que rodeia o ar, que continua a tentar abraçar a sua solidão com braços incorpóreos. O receio cresce e os “dias” com temperaturas negativas prolongam-se naquele espaço onde o tempo não é permitido. Nessas épocas, o seu coração aperta com a possibilidade de nunca vir a amar. Na hipótese de nunca ser boa o suficiente, Hela recolhe-se ainda mais no seu próprio corpo, encolhendo os seus joelhos dentro do vestido que parece agora engoli-la de uma vez só. Esta mulher conta então os sóis que decoram o seu vestido e repara que o seu número ultrapassa largamente a quantidade de margaridas nos seus campos. As flores imortais começam a falecer, impondo peso nas suas pálpebras. Por fim, Hela reconhece que não é indestrutível. Os campos onde o sol nunca se põe e onde este convive todo o tempo inexistente com a lua tornam-se finalmente vazios, agora que esta se apercebe que governar terras de ninguém não é tarefa para alguém. Por fim, Hela reconhece que não é invencível. A sua vida sem sono parece ser injustificável, visto que não há nada pelo qual deva esperar acordada. Por fim, Hela reconhece que não é inútil. Os campos onde o sol nunca se põe e onde este convive todo o tempo inexistente com a lua podem vir a ser algo de novo graças à sua magia, fortemente presente nas suas veias e artérias, produto líquido da sua vida. Por fim, Hela reconhece que é indispensável. A sua vida sem sono pode vir a ser justificável, se utilizar a sua imaginação para mudar a realidade que a rodeia. Quando esta mulher voltar a abrir os olhos, a tela de lilases e azuis e os campos verdes ocasionalmente marcados de branco e amarelo terão desaparecido. Pela primeira vez desde que os deuses a trouxeram à Terra- não à sua terra, ao planeta Terra, com letra maiúscula- Hela permite-se disfrutar de um sono mais mágico do que outrora ela mesma fora. Ao acordar, o seu corpo despido do seu vestido (mas não dos adoráveis riscos pretos nas suas pernas, graças a tudo o que é sagrado!) é aquecido por um outro corpo que jaz ao seu lado. Por vezes é preciso mais do que sobreviver para alguém se qualificar como humano no sentido completo da palavra: é preciso realmente viver, cometer erros e aprender com eles, questionar a realidade em que vivemos e mudá-la se não nos agrada. Mas, acima de tudo, é necessário amar e ser amado, confortar e ser confortado, ouvir o quão vasto é o nosso valor intrínseco neste mundo. Hela aprende a sobreviver em harmonia ao abraçar toda a palete de cores frias e quentes que contrastam e tornam o mundo naquilo que ele é; Hela aprende a viver plenamente ao abraçar todo o corpo que alcança, tanto o seu como aquele que se atreveu a finalmente compor e citar um poema em sua honra.

 

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