Débora Francisco, 12º I


Se há alguém encarregue dos mistérios da vida, Beatrice pensa que é esse alguém.
As ruas portuguesas de 1976 são outras, o ar parece mais livre e prometedor, mas a vida de criada doméstica torna-a vítima de tanta opressão como a ditadura agora falecida. O mestre tenta deitar-lhe as mãos, mas Beatrice é mulher de palavra e limpa como se o patrão fosse invisível. No entanto, ela sabe que a patroa é tão atrevida como o marido, deitando olhos e suspiros ao carteiro como se fosse o último pedaço de pão em casa de pobre (Beatrice sabe pessoalmente a luxúria que essa última migalha esconde). Mas Beatrice não esconde só os segredos do teto tradicional retrógrado português no seu coração, que nutre por França a familiaridade que apenas o seu nome mantém- esconde também um milagre maior que o de Fátima, segredo de todos os segredos, dominado por tal fantasia que se assemelha a desvaneio absoluto. A dócil criada ainda se recorda de sobrevoar monumentos aparentemente construídos por extraterrestres na sua curta mas tão longa existência como uma ave; podia não ser pomba branca, mas era certamente símbolo de liberdade e paz. Com o ar a cortar entre penas e a forte inconsciência de quão frágeis os seus ocos ossos eram, Beatrice era verdadeiramente feliz. Ave que seja ave doce não sente as dores capitalistas, a pobreza e a guerra iminentes- sente apenas o coração, a ternura nos olhos das crianças tão inocentes como ela própria. Por vezes, esta ama de lar deseja regressar aos tempos antigos, onde nunca sentira a crueldade hierárquica que os humanos impõem sobre o próximo, com tal falta de empatia que mais parece que eles outrora foram os verdadeiros animais e não Beatrice. Ao mesmo tempo, esta tenta não pensar em todo o labirinto ético que envolveria voltar atrás no tempo, especialmente pela condição anterior desta praia lusitana onde se encontra. É com grande melancolia e discrição que esta mulher decide então trocar a sua possível loucura por um verdadeiro conto de fadas. Enquanto é condenada a esfregar e varrer a troco de sementes de alimentação ao longo do dia, Beatrice aproveita as suas noites para observar as estrelas e a forma como a luz da lua reflete nas penas dos poucos pássaros que voam ainda de volta aos seus ninhos, perfeitas estrelas cadentes no céu que guarda o seu segredo. Para quem ainda possa duvidar, esta mulher de classe baixa fora realmente uma bela ave- talvez noutra vida, mais um segredo a desvendar. Os seus ossos frágeis e a pena que teima em crescer ao longo das suas costelas esquerdas provam o quão perto do coração esta realidade outrora estivera. Como é lógico a quem de sua casa é separado, Beatrice sente saudades das nuvens e do seu bando, dos ninhos conjuntos e da fantasia florestal de ser livre mas dependente da Mãe Natureza. Podemos defender que a sua verdadeira origem era aquela família alentejana que vivia no meio dos vastos campos, escassez tal que, sem a ajuda das empresas agrícolas, nem água para rega e consumo teria. E talvez fosse dessa época que vinha a verdadeira nostalgia do olhar da patroa ao pão que é carteiro que é pão em sacola, não das eras em que o alimento vinha dos parques públicos e da bondade dos hipócritas poderosos.
Beatrice não gosta de pensar profundamente nisso, como toda a criada oriunda do povo gostaria de defender que não pensa realmente nas decisões que toma ou nas palavras que expressa. Se para ser livre necessita de relembrar tempos que não tem a certeza de serem seus para recordar, será exatamente aquilo que fará- sempre lhe vale mais do que perguntar-se porque haveria a sua mãe de fugir de França, país tão delicado, para acabar na miséria que é a boca da Europa. Talvez seja por toda a confusão dentro do seu coração, que o patrão chamará de delírio (aceitar culpa nos seus toques seria martírio), que Beatrice decide ganhar novas asas e fugir. O piso mal acabado das ruas de Lisboa rasga delicadamente os pés descalços da nova pomba branca, coberta de poeira e maus-tratos. Esta mulher sabe que o seu futuro é relativamente curto sem casa onde trabalhar, mas um dia na rua nunca magoará quem já lá passou meses a fio. No dia seguinte, o sol brilha de forma diferente, uma perspetiva mais forte que apenas Ícaro experienciara anteriormente: Beatrice encontrara novamente as suas asas, encontrara novamente a sua família perdida, encontrara novamente uma forma de voar em direção ao Jardim Proibido. O entusiasmo de atingir o destino que projetara o mais rápido possível faz todos os seus músculos tremer no sôfrego bater de asas, em direção àquela torre de ferro tão célebre. Um dia ao longo da história, talvez numa nova reincarnação, Beatrice estará finalmente em Paris. Ligada às suas origens, finalmente tornando realidade a sua favorita fantasia, esta mulher-ave associará então a verdadeira nostalgia ao ligeiro sal nas brisas vindas do mar de Portugal.

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