A propósito de ….|Jorge Alves

“É um nada Amor que pode tudo,
É um não se entender o avisado,
É um querer ser livre e estar atado,
É um julgar o parvo por sisudo;

É um parar os golpes sem escudo,
É um cuidar que é e estar trocado,
É um viver alegre e enfadado,
É não poder falar e não ser mudo;

É um engano claro e mui escuro,
É um não enxergar e estar vendo,
É um julgar por brando o mais duro;

É um não querer dizer e estar dizendo,
É um no mor perigo estar seguro,
É por fim, um não sei quê, que não entendo.”

ANÓNIMO, SEC. XVII

Neste tempo de confinamento, eu, que não tenho por hábito comemorar esse dia (não por não considerar que devamos festejar o enamoramento e a paixão, mas só porque, para mim e para aminha vida em particular, há outros dias com maior significado para tal), dei comigo a pensar o que faz com que a gente se enamore de alguém, o que é que faz com que nós deixemos tudo para seguir aquela pessoa, querendo compartilhar com ela todas as aventuras de nossas vidas?
Quem não encontra melhores explicações, diz que se trata de uma “química”, de um “clima” de uma “atração”. Eu acredito mais, como os poetas, que é um nada que não entendemos que pode tudo. Porque é que, quantas vezes, por uma certa maneira de olhar, ficamos presos a uma pessoa? Como é que uma voz (às vezes só uma entoação mais peculiar) nos prende e nos arrasta, povoando-nos os sonhos e incendiando a nossa imaginação? Como é que um detalhe, umas mãos peculiares, um sinal particular no rosto nos obriga a querer conhecer e aproximar de alguém, transformando-o no centro do nosso mundo? Quando trago à memória muitas das situações que já vivi, continuo a espantar-me e a não entender onde encontrar aquele momento preciso, aquela centelha fugaz que incendeia as almas desprevenidas e as transporta para as galáxias dos sonhos mais coloridos e felizes. E é com um sorriso saudoso e nostálgico de tanta ingenuidade que relembro: aquele primeiro beijo ao som de um velho vinil dos Pink Floid, ou quando, afagando-nos os dedos, dizíamos timidamente: “acho que me apaixonei pelas tuas mãos”, ou ainda, numa bucólica ermida no alto de um monte, ao extasiarmo-nos com a paisagem deslumbrante, um abraço nos cingia como se a partir de então nada nos pudesse separar, já para não falar das cartas trocadas (no tempo em que as cartas se revelavam em profundos sentimentos), que nos mantinham unidos, apesar das longas distâncias, já para não falar das cantigas cantadas em uníssono enquanto passeávamos abraçados sem destino pela cidade: “índia, teus cabelos p’los ombros caídos, negros como a noite que não tem luar”, ou apenas um toque amigo num ombro e um convite para um passeio à beira-mar, aquele passeio e aquele toque que precedeu muitas outras viagens e o compartilhar cúmplice de duas vidas unidas? Sem dúvida que tudo isto parecerá “ridículo”, como diria o intelecto radical de Álvaro de Campos, para quem não se libertou de todos os constrangimentos sociais e de todas os seus preconceitos, e se deixou conduzir livremente apenas pelos braços dos afetos, fazendo do amor, nem que fosse de forma efémera, a sua única razão de viver. Mas de uma coisa tenho eu a certeza: foi nestes quase insignificantes episódios de vida que eu pude dizer que vivi verdadeiros momentos de felicidade e plenitude. Que outros poderemos encontrar no longo decurso de nossas existências que se comparem a estes em harmonia e cor? Com tanto caminho caminhado, com tantas emoções vividas, continuo a não saber explicar o que provoca estes felizes encontros. Apenas sei que são estes ínfimos fragmentos das nossas existências que dão sentido às nossas vidas e que nos fazem acreditar que vale muito a pena amar e ser amado.

 

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