A propósito de …. | Jorge Alves

É pena que, na nossa memória, como fazemos nos computadores, não possamos guardar os ficheiros mais valiosos para, quando precisássemos de os consultar, os pudéssemos ter impecáveis e sem lacunas, para transmitirmos as informações e os detalhes mais fidedignos. Sucedeu que eu, por ser amigo dos dirigentes da associação de estudantes da minha faculdade de letras, andava com eles na organização de um espetáculo de homenagem ao grande cantor de intervenção Adriano Correia de Oliveira, que havia falecido nesse outubro passado (ano de 1982), o que me levou a contactar, embora de forma muito efémera, com outros grandes cantores e músicos da época, muitos dos quais já nem me recorda. No entanto, um dos momentos que mais guardo na memória, entre todos estes contactos, foi quando fomos a casa do cantor Carlos do Carmo, tendo sido muito afavelmente recebidos por ele e pela mulher, num andar pacata de velho bairro urbano e burguês, talvez semelhante a muitas outras casas daquelas redondezas, mas cujo conforto era dado pela simpatia e abertura com que os proprietários nos recebiam naquele espaço privado, permitindo-nos compartilhar com eles daqueles momentos especiais e familiares de final de mais um tranquilo e sereno dia de inverno.
De tudo o que se falou, do que se combinou, das razões que levaram este cantor a participar ou a não participar neste espetáculo, pouco me lembra. Ficou-me apenas vivamente gravado na memória o som de um apito intermitente, como se fosse um menino a brincar com um qualquer primitivo instrumento de sopro, que era pura e simplesmente um sinal que um dos moradores de um prédio vizinho usava para chamar os pombos das redondezas para os alimentar e para os conduzir para pombais seguros que ele tinha no seu pátio. Fiquei fascinado como, de modo aparentemente tão simples, se podem domesticar bandos de aves arredias e tão ciosas da sua liberdade! É certo que depois deste momento, nunca tive mais qualquer contacto próximo com este enorme artista. Contudo, segui-lhe a carreira, rebuscando êxitos do passado, relembrando os momentos mais marcantes e vendo de que forma ele, com o seu contributo, promovia o enriquecimento da nossa cultura, construindo e edificando marcos que ficam para sempre ligados à sua presença, à sua ação e à sua obra. Podendo esquecer alguns, saliento o disco que Carlos do Carmo registou com o seu espetáculo ao vivo no “Olympia” de Paris, o reconhecimento internacional de uma nova forma de se fazer e viver o fado e a música portuguesa, a edição do disco “Um Homem na Cidade”, sem dúvida um momento de viragem em que o fado atingia um estatuto de grande música, abrindo-se à música clássica e ao jazz, aspetos que foram confirmados em futuros discos deste intérprete, nomeadamente com Maria João Pires ou com Bernardo Sassetti, para só nomear dois exemplos, tudo isto culminando com a criação do Museu do Fado em Lisboa, ou com a inscrição do fado como património imaterial universal da UNESCO, em que Carlos do Carmo teve uma ação preponderante. Partindo da inspiração que lhe terá sido fornecida pela sua mãe, a grande fadista Lucília do Carmo, e por muitos outros com quem conviveu, Carlos do Carmo transformou esta música, que tão bem retrata Lisboa, numa forma de arte de grande dimensão e de enorme prestígio, não se cingindo aos bairros populares de Lisboa para ser entendida e aceite como uma expressão maior da alma e do pensamento humanos. Por tudo o que nos legou e pela obra que construiu, só devemos ficar imensamente e eternamente gratos a Carlos do Carmo, continuando a defender e a preservar a sua arte.

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