Jorge Alves

Neste momento em que assistimos a inconcebíveis discussões sobre a oportunidade e o modo de se comemorar o dia da liberdade, o dia 25 de abril de 1974, talvez, alguns encontrando finalmente o pretexto para nelas não participarem, já que o fariam contrafeitos, saudosos daqueles tempos em que era legítimo alguém decidir o que cada um devia pensar ou dizer, ocorreu-me lembrar e de isso vos dar conta da forma como vivi esses momentos únicos de constante descoberta e aprendizagem, porquanto eu, com os meus ingénuos e inocentes catorze anos, tudo desconhecia do mundo, muito mais ainda por via das proibições e dos medos que aquele regime nos impunha. Devo dizer que, para mim, tudo aconteceu por acaso: eu tive a sorte de estar nos sítios certos nos momentos certos, apenas porque as coisas se conjugaram para que tudo se passasse bem perto de mim, embora, em relação a muitas delas, só me desse conta da sua importância histórica muito tempo depois. Foi por mero acaso que ouvi, quando regressava de um passeio noturno com os colegas que partilhavam a minha casa de hóspedes e que frequentavam o mesmo liceu, a música “Grândola vila morena”, não fazendo eu ideia de que estava a ouvir precisamente a senha que indicava aos militares de que tudo estava a decorrer como o planeado e de que poderiam avançar nas manobras programadas. Na manhã seguinte, com grande alarido do dono da casa, soubemos que não poderíamos ir às aulas porque a escola estava fechada e as ruas estavam cheias de militares. Por isso, não tendo outra alternativa, fomos para os nossos quartos e começámos a ouvir as notícias que, entre as músicas antigamente interditas, os militares iam difundindo pela rádio, o chamado Rádio Clube Português, por esse motivo apelidado mais tarde de emissora da liberdade. Ao ouvirmos dizer que as pessoas estavam na rua a saudar os militares, nós, apenas movidos pela nossa curiosidade, também fomos até próximo do quartel do Carmo, o centro nevrálgico de todos os acontecimentos, talvez pensando assistir a alguns confrontos, como se fosse um filme, talvez podendo ver algum dos odiados governantes do governo caído a serem detidos, ou mais certamente sem qualquer motivo. Só que, a certa altura, porque os sitiados não se rendiam, começou a haver disparos sobre o quartel onde os ministros se tinham refugiado, o que nos apagou qualquer chama de curiosidade, tendo nós começado a correr, no meio de muita gente que também se tentava acoitar, até me dar conta de que me tinha deitado no chão com a cabeça por debaixo de um banco de pedra do Largo de Camões, ficando ainda mais resguardado porque uma senhora bem avantajada de porte se viera deitar quase por sima de mim, ficando todos ali até que as rajadas de artilharia acalmassem, só depois ganhando coragem para, em grande correria, regressarmos todos a casa. Ali, junto à estátua do grande épico, talvez aquela personagem que zombara da bravata de valentia do marinheiro Fernão Veloso, quando este descia as dunas fugindo aos nativos que o atacavam, também me pudesse dizer como a ele tinha dito, apenas alterando as referências geográficas: “Amigo, esta Calçada do Combro é bem mais fácil de descer do que de subir!”. Desta forma, só porque o palco dos acontecimentos estava bem perto de minha casa, posso dizer que participei no 25 de abril. Um outro acaso deu-se um dia depois: sucedia que, no meu liceu, havia um colega, muito respeitado por todos, que, apesar de ser quase da minha idade, já era um conhecido opositor ao regime, militando no Partido Comunista e participando em imensas ações da oposição. Era ele nada mais nada menos do que Miguel Portas. Foi por acaso, quando eu brincava num recreio da escola, que comecei a ouvir um discurso a que muitos dos meus colegas assistiam com uma atenção quase de veneração. Contudo, a maioria das palavras que ele dizia eram-me completamente desconhecidas, já que de política séria e profunda Miguel Portas discorria ali com grande sapiência. Apenas retirei de todo aquele discurso que aquele golpe de estado, aquela revolução que todo o povo havia vitoriado não tinha trazido a sociedade por que os trabalhadores e os povos explorados esperavam. Então, pensei eu na minha absoluta ignorância: agora isto não se transformou no comunismo? É que eu, se calhar como muitos, pensava que o contrário da ditadura que havíamos vivido, e a sua única alternativa, era o comunismo, já que sempre tinha ouvido dizer de quem tinha algumas ideias contra o governo: “é um comunista”. Talvez nesse momento eu tenha tido algum sentimento de desilusão, porquanto ainda não sabia o quanto eu ainda iria aprender nos maravilhosos meses que depois se seguiriam. Digo ainda que foi por mero acaso que andei no dia 1 de maio de 1974 a festejar o dia do trabalhador, deambulando pela cidade, ouvindo os gritos de esperança das pessoas, agitando bandeirinhas portuguesas que rápida e milagrosamente surgiram aos milhares pela cidade, acabando numa manifestação de um dos partidos mais radicais da altura, o Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, cujas palavras radicais eu ainda entendia menos do que as do discurso pedagógico de Miguel Portas.
Foi ainda por mero acaso que eu acorri às diárias manifestações que surgiam em S. Bento, pois, eu ouvia os gritos dos manifestantes de minha casa e, nem que fosse preciso interromper o almoço ou o jantar, ia ver do que se tratava, tendo dado conta de que, de um momento para o outro, tinham surgido imensos movimentos e partidos políticos, organizações sindicais, organizações de solidariedade, entre muitas outras com os motivos e pedidos mais diversos.
Por fim, não foi por acaso que participai, dias depois, numa manifestação que exigia o fim dos exames, tendo todos ido de metropolitano sem pagar, o que dava mostras da nossa “profunda” irreverência, havendo mesmo um dos supostos líderes dessa manifestação, já que era quem levava o megafone para debitar as palavras de ordem, que deu uma informação errada aos pacatos passageiros que, fiando.se na sua indicação, saíram da composição pensando que estavam no comboio errado. Era a estes “extremos” que chegava a nossa irreverência, o nosso inconformismo, as nossas convicções políticas. Esta foi a primeira de muitas manifestações que, quer como aluno quer como professor, fiz naquele local – na Av. 5 de outubro, em frente ao Ministério da Educação. Só que, por acaso, naquela tarde de maio, a chuva deu em aparecer e poucos de nós tínhamos abrigos (guarda-chuvas, gabardinas ou quejandos) para nos acolhermos. A mim valeu-me uma desconhecida colega que, num ato generoso de altruísmo, repartiu comigo uma fina capa de um material plastificado com que ambos nos cobrimos, defendendo-nos da chuva e do frio apenas com esse exíguo abrigo e com o calor dos nossos corpos, podendo ambos, desta forna, mantermo-nos naquela manifestação até ao fim. E, por mais um mero acaso, ou porque ambos estávamos a aprender muitos outros significados da palavra liberdade, nesse final de tarde, com os manifestantes dispersos, nem eu nem essa jovem, cujo nome nunca soube, nem de que escola provinha, fomos de imediato para nossas casas, como seria espetável a dois jovens com compromissos e deveres familiares ou regras de casa em que se mora num quarto alugado com refeições incluídas.
Por tudo isto ter sido tão casual, inesperado e rico, por ter aprendido tanto com estas novas vivências é que acho que devemos sempre celebrar este dia em que nos libertaram das trevas da ignorância e da repressão para nos acenderem o farol mais belo e luminoso daquilo que dá mais sentido à vida – a liberdade.

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