Editorial |Margarida Font Amado, professora aposentada
Direitos Humanos e Direitos Humanitários
Celebra-se este mês mais um aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948. Terminada a 2ª Guerra Mundial, com o rol de barbaridades que a precederam e que dela fizeram parte, a Humanidade achou que era tempo de estabelecer um conjunto de princípios que, de certo modo, afirmasse que era capaz de fazer melhor do que matar-se aos milhões.
Ratificada nesse dia por 48 votos a favor, 0 contra e 8 abstenções, a DUDH mantém- até hoje como uma promessa de um mundo melhor, mais pacífico e mais justo. Quer isto dizer que a humanidade, capaz de desencadear as mais devastadoras guerras, os maiores massacres, é também capaz de aspirar ao contrário disso. Um grande pensador, George Steiner, fala-nos precisamente desta dualidade do ser humano, quando escreve que este “está equipado para agir com altruísmo, compaixão e uma eminente coragem. Do mesmo modo, se não mais, é propenso à selvajaria, ao egotismo, a apetites territoriais e a todos os tipos de irracionalidade. A sua inclinação para a preguiça intelectual e a cobiça material parece ser ilimitada. Este bizarro bípede é capaz de destruir pelo prazer de destruição. Veja-se, por um lado, o exemplo das hordas bárbaras e, por outro, o dos vândalos nas nossas ruas. O homem dedica-se ao sadismo com uma satisfação desconcertante. Todavia, esta mesma espécie desenvolveu algumas paixões e artes espirituais completamente desinteressadas. A matemática pura, a poesia, a especulação filosófica e certos modos artísticos são desinteressados.” E mais à frente, acrescenta: “Agrada-me a possibilidade de o surgimento de um Platão, de um Gauss ou de um Mozart entre nós, justificar ou redimir a espécie humana que concebeu e executou Auschwitz.” É certo que Steiner refere aqui exemplos positivos tirados do mundo das “paixões e artes espirituais”; mas poderemos acrescentar-lhes exemplos tirados de outras áreas da atividade humana, como, neste caso, o daqueles que sonharam com um mundo melhor e proclamaram a DUDH.
No entanto, o ser humano continua, como diz Steiner, “propenso à selvajaria, ao egotismo, a apetites territoriais e a todos os tipos de irracionalidade” e temos notícias de guerras recentes que provam bem que assim é. É então que, como acontece a propósito da Ucrânia e de Israel, passamos a ouvir falar de Direitos Humanitários, que aparecem como uma última tentativa de salvar o mínimo que seja dos Direitos Humanos ameaçados e calcados aos pés de guerreiros fanáticos e selvagens.
Com efeito, a humanidade definiu um conjunto de normas, reconhecidas internacionalmente, que constituem o Direito Internacional Humanitários (DIH) e que procuram limitar os efeitos dos conflitos armados, protegendo as pessoas que não participam diretamente neles e impondo limites aos meios e métodos de guerra. Mas, tal como acontece com a DUDH, este DIH é também muitas vezes reduzido a uma promessa: é que, como disse, em 1668, o grande escritor Padre António Vieira, “é a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal algum que se não padeça ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro: o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu suor; o nobre não tem segura a honra; o eclesiástico não tem segura a imunidade; os religiosos não têm segura a sua ceia; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro”.
Resta a cada um de nós olhar de frente o facto de que existe, em cada um de nós, o ser bom e o ser mau, o ser racional e o ser irracional, o ser que respeita os direitos dos outros e o ser que apenas pensa nos seus, o ser capaz de matar e o ser capaz de construir a paz. E depois, a cada momento, decidir qual desses seres vamos deixar vencer...