Rubrica: A Cápsula do Tempo… |Emília Margarida Marques, Centro em Rede de Investigação em Antropologia, ISCTE-IUL
A Cápsula do Tempo… I Parte: Os Alunos do Ensino Secundário na Marinha Grande em 1944
I
Primeiro, tenho de explicar como aqui cheguei: vim no encalço da pintora Tereza Arriaga, que deu aulas nesta escola, há quase 80 anos.
Na verdade, não foi bem nesta escola, que ainda não existia nessa altura. Foi na escola que a antecedeu: a Escola Industrial Guilherme Stephens, onde Tereza Arriaga foicolocada, no ano letivo de 1944 1945, para lecionar as disciplinas de Desenho Geral e Desenho Profissional aos alunos e alunas do 1º ano – correspondente ao atual 5º.
Esta é uma fotografia dela, tirada em 1946:
Tereza Arriaga em 1946. PT/TT/ PIDE SC PC 1029/47 NT 4948
Quando Tereza Arriaga veio para a Marinha Grande, a Escola Industrial funcionava nas instalações da Nacional Fábrica de Vidros, junto ao Teatro; hoje, encontra-se um café nesse local. Era uma escola dentro da fábrica, mesmo ao pé dos grandes edifícios onde, desde o século XVIII, se fabricava o vidro. Não é difícil imaginar o interesse da professora e artista plástica pelo fascinante trabalho do vidro. E se soubermos que, além de ser artista e professora, ela era também uma cidadã ativa, interessada nos problemas sociais, que procurava intervir, dentro do possível, num país onde se vivia em ditadura – de tal modo que viria a ser presa pela polícia política, em 1947 – logo adivinhamos que também as difíceis condições de trabalho dos vidreiros chamaram a sua atenção.
Tocou-a, sobretudo, a condição das crianças, dos aprendizes. Impressionada com a dureza do seu trabalho e com as marcas que lhes deixava, Tereza Arriaga decidiu que era preciso registar os gestos e os rostos daqueles jovens operários. Fez dezenas e dezenas de retratos e esboços.
Em abril do ano que vem, como parte das comemorações dos 50 anos do 25 de abril, esses desenhos, juntamente com os de outros artistas da mesma altura, serão expostos em Leiria, acompanhados de documentos que ajudem a perceber a época e o contexto em que foram criados.
Por isso ando à procura do rasto da pintora.
II
Graças à disponibilidade e interesse da professora Inês Vaz, e também do professor Cesário Silva, foi possível encontrar esta preciosa caixa:
Caixa relativa ao ano letivo 1944-1945. Arquivo ESEACD
Aqui se conserva toda a documentação da escola relativa ao ano letivo de 1944-1945: desde as matrículas às pautas de exame, dos sumários às justificações de faltas, ou à correspondência recebida na escola… Uma verdadeira cápsula do tempo!
III
Como era, então, a escola, há 80 anos? Para começar, falemos dos alunos.
De acordo com os Boletins de Matrícula arquivados, foram 132 os jovens que, no verão de 1944, se inscreveram para o ano letivo seguinte. E logo aquele número – 132 alunos – dá que pensar. Porque já 4 anos antes, quando se fez o Censo populacional de 1940, viviam no concelho quase 1500 jovens entre os 11 e os 15 anos… Então e só 132 iam frequentar a única escola que existia acima do 4º ano? Sim. E se desagregarmos estes números por raparigas e rapazes, ainda maiores ficam os pontos de interrogação. É que havia no concelho pelo menos 842 raparigas nestas idades, mas só 39 (não é gralha) se matricularam na escola.
Uma escola com 93 rapazes e 39 raparigas, portanto. E só com dois cursos: curso de Pintor de Vidros e curso de Costura e Bordados, cada um com 5 anos (era como se hoje a escola fosse só até ao 9º). Já se está mesmo a ver para qual dos cursos iam as raparigas e para qual iam os rapazes.
O leque de idades destes alunos era muito aberto: dos 11 aos 24 anos! As idades mais presentes eram os 13, os 12, os 15 e os 14 anos, por esta ordem, que somavam 73% dos alunos. Mas também havia muitos com 16 e 17, e alguns ainda mais velhos. Estaria a escola cheia de repetentes?
Antes de pensarmos que em meados da década de 1940 os estudantes marinhenses se divertiam muito e estudavam pouco, vejamos os dados que eram pedidos no Boletim de Matrícula (Boletim de Matrícula na Escola Industrial Guilherme Stephens, 1944. Arquivo ESEACD, ano letivo 1044-1945; com um agradecimento a Olga Franco e Dulce Rocha):
Boletim de Matrícula na Escola Industrial Guilherme Stephens, 1944 - Arquivo ESEACD, ano letivo 1044-1945; com um agradecimento a Olga Franco e Dulce Rocha.
Tal como hoje, na matrícula tinha de se indicar o nome, a filiação (nome dos pais), data de nascimento, localidade de nascimento e de residência. Mas também... a profissão do aluno! Porque grande parte destes alunos não eram, na verdade, simples estudantes. Eram trabalhadores-estudantes: frequentavam a escola, mas só à noite (havia aulas diurnas e noturnas); de dia, estavam a trabalhar.
De facto, apenas 60% dos 132 boletins de matrícula indicam “estudante” como profissão. Os restantes inscritos são vidreiros ou outros operários ligados ao vidro (lapidários, pintores, maçariqueiros), o que soma 32% de todos os alunos, ou são operários noutras indústrias (13%), ou trabalham em lojas, armazéns, escritórios ou laboratórios (9% ao todo).
Também aqui a diferença entre rapazes e raparigas é radical. Todas elas são registadas como “estudantes” – o que significa que, considerando somente os rapazes, a percentagem de alunos trabalhadores sobe para 55%.
Como se estes números não fossem já tão elevados, há na caixa outros documentos que nos indicam ser a proporção de trabalhadores-estudantes ainda maior do que mostram os Boletins de Matrícula. Se virmos, por exemplo, as listas dos alunos de Tereza Arriaga, na disciplina de Desenho Profissional, verificamos que 71% frequentavam o curso noturno (o que indicia tratar-se de trabalhadores-estudantes), embora o Boletim de Matrícula de muitos deles indique que são apenas estudantes.
Por que motivo aconteceria esta inexatidão? Ponho uma hipótese. Como o Boletim pede para indicar “profissão” e não “emprego”, os próprios alunos ou, talvez, a secretaria da escola, poderão ter considerado que os trabalhos incertos ou precários que muitos desempenhavam não eram propriamente uma profissão, acabando por indicar “estudante” nessa linha do Boletim.
IV
É interessante o arquivo da escola também nos faz olhar para aqueles (muitos) que não estavam lá.
O reduzido número de alunos decorria das dificuldades económicas das famílias, que levavam muitas crianças e jovens a iniciar precocemente a sua atividade laboral, afastando-os da escolaridade. Ainda assim, as aulas noturnas permitiam a alguns prosseguir os estudos – embora com esforço, depois de um dia de trabalho. Se não houvesse esse horário, nem sequer 132 alunos a escola teria.
Mas esta era uma oportunidade da qual, pelo menos no ano letivo 1944-1945, apenas os rapazes beneficiavam. Embora o Censo populacional de 1940 indique que 75% das raparigas do concelho entre os 10 e os 14 anos já faziam parte da população ativa (mais um número que dá bastante que pensar), nenhuma delas parece ter sido trabalhadora-estudante nesta altura. Era mais difícil para as raparigas sair à noite. E, além disso, quando chegavam a casa depois do trabalho tinham à sua espera muitas tarefas domésticas, das quais os rapazes se encontravam dispensados.
Para a maior parte dos jovens marinhenses, a escola era um sonho distante.
VI
Mas, para os 132 cujos nomes constam nos Boletins de Matrícula, como era, afinal, a escola? A que horas tinham aulas? Quem eram os outros professores, para além de Tereza Arriaga? O que sabemos das aulas dela? E quanto às avaliações? Seria difícil ter boas notas?
Fiquem atentos ao próximo Ponto & Vírgula!