A Propósito de … | Jorge Carreira Alves

Vai quase em quarenta anos que eu, munido apenas pela minha timidez e insegurança, entrei pela primeira vez nesta escola, que na altura ainda se chamava Escola Secundária da Marinha Grande, como professor de português, dando a minha primeira aula a uma turma de 9º ano, onde, entre outros alunos, se evidenciava aquela que, até hoje, considero ter sido a minha aluna mais inteligente e desafiante. Mas não é a propósito dessa aluna que quero escrever hoje. Hoje, ao deparar-me com as lutas dos professores e com as intransigências de quem negoceia aquilo que deveriam ser os direitos adquiridos e inquestionáveis de uma classe tão necessária à nossa sociedade (pelo menos é o que proclamam aqueles que lhes negam esses mesmos direitos), pergunto-me: se fosse hoje, teria eu a mesma ousadia e a mesma motivação para empenhar a minha juventude nesta carreira? Nessa época, felizmente, já a classe docente não tinha aquele “prestígio” e aquela aura de poder que tanto caracterizava os mestres de outras e bafientas épocas, quando eram os ensinantes dos grandes valores da ditadura (deus, pátria, família), já não era o símbolo doméstico da autoridade patriarcal e duramente paternalista desses tempos obscuros a que ninguém queria voltar. Nesta época, ressaca dos incríveis dias da bela revolução que o povo havia operado, esta jovem e inexperiente classe docente tentava aprender e integrar-se nos novos valores da democracia e da liberdade que ainda há poucos anos havíamos conquistado. Naquela época, como eu, havia agora uma nova geração cheia de utopias, aberta a novas experiências, que tentava fazer da escola um espaço de novas e úteis aprendizagens, inventando e experimentando, com muitos erros e reveses, aquilo que pensávamos ser a escola do futuro, uma escola onde o convívio e o diálogo entre professores e alunos fossem mais abertos, mais francos e mais verdadeiros, numa verdadeira cumplicidade de quem trilha os mesmos caminhos de uma aprendizagem constante. Por isso, para além dos formalismos que ainda mantínhamos nos espaços das aulas, já que outra coisa ainda não tínhamos aprendido, encontrávamos espaço e tempo para experimentarmos novas ideias, onde eram possíveis francos momentos de lazer e convívio, quando jovens professores e alunos mais adultos partilhavam espaços de encontro, após as aulas, ou quando se empenhavam conjuntamente em visitas de estudo, em atividades extracurriculares, em projetos de valorização da nossa velha escola. Entretanto, com aquilo a que os politólogos chamaram a “normalização democrática”, as utopias foram fenecendo, muitos de nós foram-se acomodando, outros tantos deixaram de encarar a escola com a verdade e a dignidade que ela merecia, resignando-se a serem pouco mais que funcionários que transmitiam matérias e, mais ou menos rigorosamente, avaliavam jovens e adultos, quantas vezes marcando-os, positiva ou negativamente, para o resto de suas vidas. Por outro lado, essa mesma “normalização democrática” do país começou a transformar, paulatinamente, os inventivos e audazes professores das gloriosas épocas revolucionárias em meras correias de transmissão de um poder cada vez mais burguês, de um ensino cada vez mais acrítico e sem ideais, numa normalização de pensamentos e ideias que obstruía cada vez mais a criatividade, levando à desmotivação e à resignação geral, tudo agravado pela constante degradação dos direitos que tão arduamente se haviam conquistado. Foi assim, que a esta classe profissional se foi exigindo cada vez mais esforço, quantas vezes inglório, porquanto muito do seu tempo era passado em atividades meramente burocráticas, tendo-se que confrontar com alunos, também,, cada vez mais desinteressados e alheados, ao mesmo tempo que se fazia tudo para tornar esta profissão cada vez menos atrativa, baixando-lhe o poder de compra, retirando-lhe os poucos incentivos que ainda a tornavam aliciante, até que a fizeram pagar as diversas crises criadas pelos gurus da especulação e da atual ditadura neoliberal, acabando por lhe amputar o tempo de serviço, como se o seu trabalho nada valesse, não lho voltando a restituir, assim como à sua dignidade profissional, deixando toda a classe num marasmo de descrença. Por isso, agora pergunto-me? Nas condições atuais, entraria eu nesta escola como o fiz há quase quarenta anos, com a mesma motivação, com os mesmos sonhos, com os mesmos utópicos ideais? Certamente que não, como não o fazem os jovens de hoje que, apesar das incertezas e do pouco valor que é dado ao trabalho, de uma maneira geral, arriscam todas as outras profissões que se lhes apresentem, raramente enveredando pela docência. Desta forma, hoje em dia, deparamo-nos com uma classe docente plenamente envelhecida, desmotivada, só esperando pela primeira hipótese para se reformar e sair do “inferno” que os sucessivos poderes que tanto apregoam a excelência de ser professor lhes impuseram. Não questiono as formas de luta dos professores, mas de uma coisa tenho a certeza absoluta: as suas reivindicações são mais que justas e perfeitamente fundamentadas. Basta que quem tem o poder os olhe com a dignidade e com o respeito que dizem ter por eles.

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