Rui Verdasca (12ºH)

1. Numa das tragédias gregas mais aclamadas da Antiguidade, Édipo Rei (em grego, Οἰδίπους Τύραννος; transl. Oidípous Týrannos), de Sófocles, a primeira anotação que lemos é que há uma peste a grassar a cidade de Tebas. Como consequência, a tragédia principia com o týrannos, Édipo, em grandes dificuldades para identificar a causa da epidemia, pelo que, num artificialismo brilhantemente construído por Sófocles, vamos compreendendo que a praga se deve precisamente à sua má-governação. O resto da história já nós o conhecemos, não só pela incidência da teoria freudiana sobre este ponto mas também pela característica especial que o enredo evoca, mesmo nos dias de hoje: assassínio, incesto e automutilação. Com a mais recente turbulência que o ano de dois mil e vinte tem vindo a sentir, a tragédia grega toca-nos, despindo-nos na nossa nudez forte da verdade – apropriando a expressão queirosiana – e permitindo-nos fazer ligações várias com ela. Sófocles dialoga, portanto, connosco neste momento de profunda necessidade de diálogo; e, contrariamente à profecia que, em Édipo, serve como mecanismo de enunciação trágica, a forma como a COVID-19 surgiu só o determinismo o sabe. Não nos interessa, por conseguinte, analisar se houve uma má-governação. O que verdadeiramente nos interessa é a possível automutilação que o momento presente poderá trazer num momento futuro, no ἔξοδος (exodus), ou seja, no final estrutural desta recente tragédia. O repto patente é, então, olharmos, enquanto temos olhos para o fazer, os dois lados de uma moeda; e se, no plano do isolamento social, estamos, na cara, mais próximos de outrem ou, na coroa, mais distantes.
2. Em primeiro lugar, o isolamento social que estamos a cumprir tem sido, grosso modo, manifestamente positivo. Não só estão os indivíduos a quedar-se em casa, indo ao encontro do estabelecido, mas também, e aqui o importante núcleo, tem havido uma evidente união para que a crise se desvaneça (e.g. disponibilização gratuita de elementos culturais, apoios económicos, comportamentos de ajuda para indivíduos de risco, et cetera). Numa visão prática, estamos, por conseguinte, mais próximos dos outros. Isso é factual. E, portanto, pese embora a existência de algumas manifestações sociais que ocorreram mais negativamente (em vez de corrida aos armamentos, a corrida às latas de atum, por exemplo), não conjurámos o apocalipse. Felizmente, aquilo que Saramago descreveu em Ensaio sobre a Cegueira não foi exatamente a realidade da COVID-19. Não se descarte, contudo, imediatamente o génio saramaguiano, pelo menos nos moldes sociais tão típicos de hoje. Na verdade, o que existe é necessidade e obrigação de vida ou morte: estes são o que há de mais natural. Então, agimos. Mas estamos efetivamente mais próximos? Ou estamos a levantar o manto diáfano da fantasia que esconde a natureza manifesta da vivência habitual, quando sem coronavírus? Como resposta, podemos olhar isto de duas formas: o isolamento social tem vindo ou a cegar-nos ou a fazer com que arranquemos os nossos próprios olhos, como Édipo.
3. O que é que este isolamento evidencia, portanto, da proximidade com os outros? Revela uma profundeza subtil: a de que, na verdade, não estivemos próximos antes, e tão pouco estamos agora, se é que estamos a falar de uma verdadeira proximidade. As discrepâncias, tão longamente vistas, tão envelhecidas, são inerentemente imensas, com ou sem vírus. Neste momento em que temos um com, a forma como nos unimos é só uma forma de reparar o sem. Ou seja, na boa lógica que nos caracteriza, preferimos reparar as consequências do mal, quando o que seria eficaz, honesto e verdadeiro apanágio de união seria impedir a raiz de crescer. Apropriando Eça novamente, Procastinare lusitanum est. Povo de procrastinação efetivamente; mas esqueceu-se Eça do resto do mundo. De todo o modo, a raiz cresce; e com ela, uma espécie de união, atendendo ao facto de que é com efeito uma espécie, uma avis rara, ainda por cima ínfima, porque não existe. Somos, com ou sem isolamento, duplamente distantes. Sem, porque é a originária. Com, porque é o corolário. E, assim, o isolamento e a questão da proximidade evocam uma reflexão: uma de bons ou maus modos de fazer as coisas, ou de pensá-las. A ver o outro lado da moeda, a coroa, encontramos entre nós uma distância ab origine e ab imo. E, naturalmente, a que agora estamos imersos.
4. Será que quando o vírus for ultrapassado, pois eventualmente será, voltaremos ao mesmo dia-a-dia tão egoisticamente distante, tão comum, tão real que o não vemos? Salve, coronavírus!, ao menos, entre tanta tragédia, dá-nos olhos para ver aquela que é verdadeira! A constante, a sempiterna não-solidariedade. Estranhos prisioneiros são esses de que tu falas que precisam de um vírus para observar, e mesmo assim são cegos. Semelhante a nós, virulentos, num globo que aparenta ser plano, em que cerca de cinquenta indivíduos têm mais riqueza que três biliões. A absurdidade é, indubitavelmente, imensa, extensa e intensa: caminhando ad infinitum. A verdadeira solidariedade, e por extensão proximidade, é, em suma, aquela que existe sem vírus… De todo o modo, acabou-se por falar da má-governação. Talvez fosse o que estava do outro lado moeda. Tal como Sófocles imprimiu em Édipo, também não escapamos à profecia. Tentemos, mesmo assim, não arrancar os olhos, quando se der a peroração.

 

 

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