Reflexões Ocasionais | Lurdes Neto


A obra expressionista de Cândido Portinari parece retratar uma família anónima de migrantes, que se retira de uma região para outra, em busca de melhores condições de vida. Comummente ao capítulo 148 da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, esta família é forçada a lidar com a fome e doenças, entre outros obstáculos. Contudo, prevalece, mesmo sem rumo nem um caminho traçado, mantendo-se unida nesta guerra contra a fome. A família de migrantes ao centro toma quase a totalidade da tela e o contorno escuro das personagens confere um tom pesado e lúgubre ao quadro. Ao fundo, vê-se a paisagem do sertão – um panorama deveras desolador –, e o único elemento que se distingue no horizonte é o contorno quase indistinto de uma montanha. Se, porventura, esmiuçarmos os detalhes, apercebemo-nos do chão duro e árido, com ausência de vegetação devido à seca. As pessoas estão todas descalças, sinal de pobreza, guiando-nos também à reflexão sobre a dureza da jornada dos migrantes, tanto fisicamente como emocionalmente. Para sublinhar a ruína e o perecimento, há ainda pedras e ossos espalhados pelo chão, acompanhados por um bando de aves negras rente ao solo, provavelmente a manducar uma carniça, enquanto o céu se encontra repleto de urubus que rodeiam a família como se aguardassem a morte dos mesmos. O pintor expôs o grupo de, ao todo, cinco crianças e quatro adultos, de maneira sombria, melancólica e sorumbática. Contrariamente às duas crianças ao colo, que apresentam uma aparência raquítica, testemunha-se uma criança com a barriga saliente e desproporcional ao resto do corpo. Ora, outra triste realidade tratada na pintura é o alto índice de doenças com que os migrantes se debatem. Quanto ao semblante, os adultos revelam feições fortes, embora assustadas, que demonstram o imenso desespero que a situação carrega. Por isso, encaram-nos com o olhar arregalado como uma espécie de pedido de ajuda. E, similarmente, as crianças lançam expressões distantes e desoladas. Até mesmo o bebé envolto em panos brancos tem olhos que saltam, fitando o mundo, assustado. Considere-se também a interpretação da elevada taxa de natalidade da população, já que as famílias mais vulneráveis e menos instruídas acabam por gerar mais filhos. Tal ocorre em grande parte por conta da falta de políticas públicas de consciencialização e acesso a meios contracetivos. Arrematando, contempla-se uma família que abandona a sua terra para fugir da fome, da miséria e da falta de perspetiva. Os tons fúnebres e as figuras fantasmagóricas revelam uma situação desumana que, infelizmente, ainda é vivenciada por inúmeros migrantes em fuga, inclusive de guerras civis, religiosas e políticas, que em desalento se aventuram por mares e oceanos à procura de um porto seguro. Deste modo, é possível perceber como a pintura de Cândido Portinari se mantém atual e conversa com o contexto corrente, visto que, ainda hoje, somos plateia para o palco da fome, da pobreza, da falta de empatia, do retrocesso. Atualmente, os migrantes continuam a vaguear todos os dias. Porém, permanecem à margem da sociedade, onde foram abandonados à sorte (ou azar) do acaso, sendo constantemente rodeados por um ambiente sufocante, tal como pinta Portinari. Que caminho espera aqueles que não têm mais o que esperar?

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