A Propósito de | Jorge Carreira Alves

Desde muito novo que me apercebi de que a casa, de tão humana que é, tem uma história de vida, tal qual as nossas histórias, e vive em nós, intimamente, nas memórias, nos sentimentos, nas emoções, numa cumplicidade e comunhão com aqueles que a habitam, que eu diria que os humanos e as casas em que habitam fazem parte do mesmo organismo vivo. A minha primeira casa, a casa onde nasci, era forte, de grossas paredes, tal qual um castelo intransponível, onde eu podia guardar todas os tesouros, todas as ingénuas felicidades vividas na minha infância. Era a casa a que eu gostava sempre de regressar, quando deambulava pelas memórias e pretendia ter algum local de conforto, era a casa dos aconchegos, quando eu regressava das minhas longas ausências estudantis e era a casa a que regressava para me restituir às minhas mais antigas memórias. A pouco e pouco, ao longo dos seus quase incontáveis anos de vida, com a saída dos que lá vivíamos, uns, por irem construir as suas vidas noutras casas, outros, por terminarem a sua caminhada na vida, esta casa foi emudecendo, deixando de ser habitadas pelas vozes, pelas gargalhadas, pelos choros, ficando cada vez mais enraizada apenas às suas memórias, enquanto o tempo ia esboroando lentamente todas as estruturas que a ligavam à vida, indo-se enchendo dos frios das ausências, apenas com os sons incertos que povoam pedras, canos, estuques e madeiras, para além dos sons exteriores e alheios que uma infinidade de frinchas deixavam entrar no seu íntimo. Hoje, essa casa já perdeu todos aqueles que a habitavam e, quando reentro dentro daquelas paredes frias, tudo me parece petrificado, prisioneiro num passado sem retorno, porquanto, até a própria alma dessa casa, retirados todos os objetos que a faziam ligar-se a esse passado e remoçando-se-lhe paredes, portas, janelas e soalhos, se irá desvanecer nas estrelas como as memórias daqueles que lhe haviam dado vida. Entretanto, muitas outras casas foram passando pela minha vida: Aquela grande casa, imensa de seres fantásticos e fabulosos, onde muitos iguais a mim habitavam, no mesmo desterro de famílias longínquas, inventando nos circunstantes novas famílias de empréstimo, mas onde todos cumplicemente aprendíamos e crescíamos. Aquela grande casa, ventre imenso de incontáveis filhos, com tantas histórias e lendas que nos enchiam de espantos e de sustos, mas de onde se via um imenso mar povoado de grandes navios, com noites ventosas cheias dos gritos das gaivotas, onde os sonhos brilhavam mais intensamente e a imaginação podia viajar sem limites. Dessa grande casa-mãe, observava mais duas casas, simples, térreas, de telhados curvilíneos, que pareciam sorrir com duas verdes janelas quadradas e uma grande porta central, casas de aprender, muito mais vizinhas do mar e dos sonhos, que pareciam sempre envoltas numa misteriosa névoa azul de felicidade. Nessa minha infância, por vezes, também havia a grande casa da tia rica, a casa da grande cidade, onde eu pernoitava por especial deferência, uma casa cheia de ressonâncias noturnas, ao ritmo dos vagarosos e arrastantes elétricos, com gorgolejos constantes de canos de águas e de aquecimentos e o barulho metálico e intermitente do ancestral e gradeado elevador, que nunca se sabia onde parava ou quando queria andar, aquela casa toda atapetada de fofas e empoeiradas alcatifas de cheiros acumulados e antigos, onde um pesadíssimo e vetusto gato se esforçava por caminhar, miando com um som de eras muito passadas. Uma casa cujos habitantes pareciam velhas ilustrações de livros do século XIX, nas traseiras da qual, para além de todos os confortáveis quartos e das enormes salas atravancadas de pesadas mobílias, para além da grande cozinha e da bem fornecida despensa, um minúsculo quartinho acoitava a infantil criada, pouco mais velha que eu, a que a vida roubara escola e família, desterrada naquela urbe, como uma estrangeira, aquela criança vinda de um mundo tão distinto, mas igualmente pobre e sofredor, aquela criança forçada a ser mulher, da qual nem soube o nome, mas que me aconchegava como se eu fosse um seu irmão mais novo. Entretanto, nunca mais soube dessa casa petrificada nesse passado de senhores todo-poderosos e criados infinitamente serviçais. Talvez ainda exista, morta, vazia, bafienta, talvez tenha sido reciclada em apartamento de luxo, onde outros senhores de outras igualmente firmes e incontestáveis convicções, vivam, policiando os outros pelas suas supostas ideias retrógradas e não alinhadas com as que iluminam o nosso século… não sei; talvez seja um andar de burocráticos e negociantes escritórios… nunca o saberei, por certo, mas, sem dúvida, para mim, transporta-me sempre a um tempo de vigilâncias opressivas que pretendia que nunca tivessem existido. Por fim, porque não falar da casa dos dias de hoje, uma casa cheia de sol e de bons aromas, uma casa de paisagens verdes pontuadas pelo chilrear da passarada pela madrugada e pelos gritos alegres das brincadeiras das crianças, uma casa de paredes brancas, qual pura, branca e verdadeira eu quisera a minha vida. Por tudo isto, tenho firme a convicção de que nós somos a nossa casa e é ela que nos habita.

 

 

 

 

 

 

 

 

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