A Propósito de … | Jorge Carreira Alves

Chernobyl havia sido há pouco mais de um ano, mas nós, neste cantinho ocidental plantado, não conhecíamos ainda, na sua totalidade, as consequências brutais de tal acidente. Por outro lado, perestroika era uma palavra nova que nos trazia uma dupla sensação de desconforto e de esperança, por parecer derrubar velhos dogmas e certezas, mas trazer também algo de novo e luminoso às nossas crenças. Por tudo isto e com uma avidez um pouco ingénua de contactar novos povos e experimentar diferentes emoções, acetei o desafio de um grupo de portugueses, com o espírito combativo de uma solidariedade revolucionária, para conhecer aquele imenso país, tão desafiadoramente escondido e, talvez por isso, fruto de tanta sedução. Foi com estas palavras e muito desconhecimento, mas também com uma incomensurável curiosidade que cheguei àquela imponente cidade cheia de história, imensa de grandiosas joias arquitetónicas e exuberante na sua graça e simpatia. Eu e os meus companheiros de aventura, chegámos de madrugada, após uma noite mal dormida na longa viagem de comboio desde a ainda mais grandiosa e imperial cidade capital daquele quase infindo país, tendo que esperar na gare dessa estação pela prestável guia que nos desvendasse todas as teias desse labirinto de palavras e locais desconhecidos. Depois, tudo foram boas surpresas e admiráveis encontros com a história e com as gentes que simpaticamente se predispunham a nos ensinar tudo o que de belo tinha aquele país. E houve um admirável tour turístico pelos locais mais assinalados, entrando em vetustos conventos ortodoxos onde repousam santos, admirando a imponente catedral de Santa Sofia, guardiã de glórias de luminosos passados, passando também pelas simbólicas portas douradas, que um enorme compositor russo imortalizou numa das suas obras mais famosas, ou parando, finalmente, num estádio onde outras glórias se celebraram, para além de muitos e muitos outros locais e momentos que seria fastidioso enumerar. No entanto, a mim, um dos mais jovens membros daquele grupo de portugueses que, com uma solidária amizade, queria contactar com aqueles povos, o que mais me tocou e que ainda me deixa uma certa saudade, pela franca e fraterna troca de experiências e vivências, foram os encontros não programados com aquelas gentes, sobretudo com os mais jovens, que, cheios de simpatia e com uma tão grande curiosidade como a nossa, se davam a conhecer e nos queriam entender, tal qual nós a eles. Foi numa dessas ocasiões, após o jantar, sempre servido a horas que para nós seriam apenas horas do lanche, que conheci aquela cativante mulher, de minúscula estatura, mas imensa na sua forma de comunicar e de a todos cativar com a sua simpatia, ao encontrarmo-nos numa espécie de clube juvenil, ou associação de estudantes, onde se fizeram jogos, se dançou, se cantou, tentando demonstrar uns aos outros as peculiaridades das nossas culturas. No entanto, nesse primeiro encontro de jovens universitários, tudo o que se passou não foi além de algumas poucas frases trocadas na caótica confusão daquele alegre convívio. Porém na tarde seguinte, com todo o grupo de portugueses, a sua simpática presença foi bem notada, durante o doce e suave minicruzeiro pelo Dniepre que fizemos, avistando, ao longe, as cúpulas douradas de igrejas e palácios, ou vislumbrando o simples e pacato dia-a-dia de um pescador-amador, que tentaria retirar das águas mais alguns proventos para a sua subsistência. Mas o momento mais inesquecível e marcante do périplo por essa cidade nortenha, onde os dias de verão são bem mais longos que os nossos, sucedeu da forma mais inesperada, quando eu e os meus companheiros deambulávamos pelas ruas e praças, um pouco sem destino, e nos deparámos com um grupo de alunos universitários de muitas e variadas nações que conviviam pacatamente ao som de umas plangentes músicas que alguns palestinianos cantavam e alguém do grupo de portugueses que comigo ia nos desafiou a que também participássemos nesse aprazível encontro. Apesar das minhas poucas habilitações para tocar qualquer instrumento, pedi uma guitarra a um dos palestinianos e, com a ajuda dos meus companheiros, começámos a cantar as nossas músicas tradicionais, tentando, também, trautear alguma música daquele país (o Kalinka, ou a Katiuska), ou outras músicas internacionais das recentes lutas políticas que muitos de nós conhecíamos e abraçávamos, tendo-se criado, sem que nos apercebêssemos, um enorme clima de alegre cumplicidade que muito nos maravilhou. Mais uma vez, entre as pessoas que nos acompanhavam, estava essa jovem mulher, professora de espanhol na universidade daquela cidade, que, mais uma vez, nos serviu de intérprete, sendo uma das participantes mais ativas daquele convívio, notando-se não só pela sua simpatia e prestabilidade, como também pela sua beleza latina, já que a sua pequena estatura, os seus longos cabelos negros e a sua bem produzida maquilhagem mais a assemelhava a uma sevilhana do que a uma natural daquelas paragens. De tudo o que se disse, do quanto que se cantou, de tudo o que se viveu naquele improvisado convívio de muitas nações, ficou-me indelevelmente marcado na memória o beijo que trocámos, “con amistad”, como agradecimento pelos momentos ali vividos, um beijo que só poderia conduzir a outros sonhos, ali naquele final de verão em uma terra tão longínqua, naquela terra, hoje massacrada, na quela terra de gentes de simpatia tão natural, naquela feliz (que o era) cidade de Kiev.

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