A Propósito de… | Jorge Carreira Alves

Os nossos mais velhos: as maiores vítimas da pandemia

Neste tempo de completa loucura em que vivemos, quando pensamos proteger aqueles que nos são mais queridos, na nossa ânsia insana de lhes evitar todos os males, fizemos desses seres, aqueles a quem mais amamos, os nossos mais velhos, as maiores vítimas dos nossos medos e das nossas inseguranças, condenando-os a um triste fim de vida, apenas povoado de abandono, solidão e angústia. Será que nós, nesta abordagem securitária e medrosa, não nos estávamos antes a proteger a nós mesmos, ao pensarmos que esses seres, mais vulneráveis à doença, poderiam ser maiores transmissores da mesma às pessoas que, felizmente, ainda se considerariam ativas e úteis à sociedade? Será que os protegemos mesmo deste terrível mal? Será que, ao fechá-los num casulo, ao emparedá-los nos “seus lares” e casas de “repouso”, evitámos que se contaminassem, sofressem e falecessem menos? Pelos números a que tivemos acesso, provavelmente não, porquanto, eles faleceram, antes da vacinação, continuam a falecer após a mesma e ainda haverá muitos que ainda perderão a vida por causa desta doença. Para além disso, com este emparedamento, com esta clausura, provocámos ainda mais terríveis e inconsoláveis doenças que poucas palavras conseguem descrever e que provocam longas e angustiosas agonias solitárias e silenciosas! Quantos destes nossos seres amados, não morrendo da terrível covid19, têm vindo a perecer neste tormento solitário, resignado e silencioso? Quantos incontáveis números estarão por detrás dessas mortes silenciosas, que só nos envergonham, porquanto nos gritam que falhámos redondamente com aqueles a quem mais devíamos defender e preservar. Diz-se num provérbio antigo de uma antiga civilização: quando morre um velho, desaparece uma biblioteca. Será que ainda não percebemos que, ao abandonarmos estes seres queridos, estamo-nos a abandonar a nós mesmo à nossa ignorância, ao nosso egoísmo, à nossa desumanidade? Vou contar-vos alguns casos bem ilustrativos da angústia vivida pelos nossos mais velhos e por quem fica por cá, na sua enorme impotência e no seu sofrido remorso.
• Estávamos na primeira fase da pandemia, primeiro confinamento. Conceição, após muitos anos de árduos trabalhos, sendo o pilar de uma feliz família que contava consigo para todas as coisas necessárias de um quotidiano de trabalhos e estudos, após adoecer, após ter dado uma queda que a terá deixado debilitada e bastante tolhida nos seus movimentos, tudo se agravando por uma constante e cada vez maior debilidade cognitiva, foi encaminhada pelos seus familiares para um belo e confortável lar de idosos, onde poderia ter vários estímulos diários, com imensas atividades lúdicas que a faziam sentir-se ainda capaz e útil, sendo visitada amiúde por aqueles a quem mais bem queria. Tudo isto a fazia sentir-se tranquila, com uma certa felicidade, apesar do afastamento dos espaços onde vivera por tão longos anos e que conhecia de olhos fechados. De súbito, em março de 2020, veio o terrível decreto de tudo fechar, de emparedar e “proteger” os nossos mais velhos, de afastá-los absolutamente daqueles a quem mais queriam.
Rapidamente, as capacidades cognitivas e sensoriais de Conceição se foram debilitando, deixando de ouvir, de ver, o que impedia qualquer contacto, mesmo através dos meios mais evoluídos da eletrónica contemporânea, com os seus entes queridos. E era uma angústia para si e para quem tentava comunicar com ela aqueles momentos de videochamadas em que a filha ou os netos tentavam comunicar com ela:
- Mãe, não me está a ver? Sou a sua filha! Sou a Marta! Não me ouve? Estão aqui os seus netos: o Francisco e o Tiago!
Mas Conceição nada entendia, porque deixara de ver e já pouco ouvia, acabando por se abandonar num silêncio absoluto, até que, providencialmente, se abandonou à morte. E, solitariamente, como vivera os seus últimos meses, veio a falecer, sem honras fúnebres, sem o último adeus dos seus mais próximos, sem um beijo ou um abraço acalentador. E, no meio da sua mais absoluta solidão, assim nos deixou este ser. Igual a tantos outros que assim nos deixaram.

• Um outro caso sucedeu com Luz, uma senhora muito lutadora que, apesar de todas as contrariedades, apesar da pobreza e dos preconceitos contra os quais teve de combater, criou três filhos, dois deles licenciados, podendo, no final da sua vida, anteriormente à pandemia, dizer que gozou o que de melhor tem a vida, viajando, convivendo e sendo possuidora de um espírito imensamente lúcido e sagaz.
Sucedeu que, após fazer os 95 anos, com uma festa bonita onde recebeu muitos antigos amigos, a sua debilidade física e o repentino surgimento da pandemia fizeram com que ela tivesse que abandonar a casa onde sempre vivera, indo para a junto da sua filha mais velha onde, pela proximidade com a sua antiga habitação, quando havia algum alívio do confinamento, ainda podia fazer algumas breves visitas a essa casa de tantas memórias, tentando, na medida do possível, cuidá-la, tratando das suas plantas e arejando-a. Só que, para agravar esta situação, a sua filha mais velha sofreria um grave problema de saúde que a deixaria incapacitada para dar assistência devida à sua mãe, o que a fez deslocar-se para o domicílio do seu filho mais novo, que ficava num lugar mais afastado, o que a impossibilitava quase por completo de fazer aquelas visitas a sua casa. Aí, começou um largo caminho de angústia e de revolta por se ver assim arredada do seu espaço, não entendendo porque razão todos tinham que estar encerrados, sem se poderem deslocar para junto dos seus, para os locais que mais lhes diziam e que tanto das suas vidas continham. Daí, começar a rejeitar as ajudas que lhe eram oferecidas por parte de instituições de solidariedade, por as entender desnecessárias, achando ser capaz de viver o seu quotidiano como dantes, sozinha, tratando da sua casa, convivendo com os poucos vizinhos da rua, sendo capaz de se manter… até que, a pouco e pouco, foi tomando consciência de lhe irem faltando as forças, e as capacidades motoras para concretizar muitos desses gestos quotidianos.
A partir de então, com os sucessivos confinamentos, por não poder cuidar de sua casa, por não poder acompanhar a sua filha debilitada, foi sendo possuída por uma cada vez mais profunda tristeza, por mais profundos e prolongados silêncios, indo perdendo as forças e as vontades, até que um dia, o andar não lhe correspondeu e não conseguiu sair do seu leito. Foi num dia de grandes milagres e aparições. O corpo não lhe respondia à vontade de se mover e o cérebro, já tão cansado, parecia querer mergulhar num sono profundo. Vieram bombeiros e paramédicos que, após procurarem medir alguns valores vitais, a transportaram para o hospital da região, numa despedida silenciosa, como predicente de ser uma viagem sem retorno.
No hospital, sem direito a visitas, apenas a nora, por trabalhar em saúde, a ia acalentando, tentando pô-la em contacto com os filhos e o neto, sendo ela quem fazia sempre a mesma pergunta:
- Como estás? Estás bem?
Mas pouco ia falando de si, pensando apenas que, se deixasse bem os seus entes queridos, mais tranquilamente poderia terminar a sua viagem.
Numa tarde, os filhos e a nora foram chamados ao hospital, já que esta mulher de tão longa e luminosa vida, parecia dar sinais de ter chegado ao fim da sua árdua e lutadora viagem. Realmente, quando estes familiares chegaram junto dela, a sua respiração pareceu ser um pouco mais ofegante, como se quisesse dizer as suas derradeiras palavras, apesar dos obstáculos da máscara de oxigénio que ainda a ajudava a respirar, tendo aberto os olhos para quem ali estava, o que os fez dizer:
- Olha, mãe, somos nós, os teus filhos, a tua norinha!
E, agora tranquilamente, a sua respiração pareceu dissipar-se numa mudez de enorme paz, após um caminho de imensas lutas de quase um século.

• O terceiro e último caso que vos conto é o de Natália, mulher tenaz, capaz de criar quatro filhos com carreiras bem-sucedidas, vendo crescer vários netos, mas que, ao ser aplacada por aquela doença que, a pouco e pouco, vai tolhendo o cérebro, o raciocínio e vai confundido a memória, foi para um lar onde poderia ser devidamente tratada e acarinhada, recebendo bastantes estímulos para tentar enfrear este degradante percurso de afastamento da realidade. Contudo, amiúde, os filhos e netos visitavam-na, levavam-na a suas casas para os festejos familiares e, num percurso tranquilo, Natália ia subindo esses derradeiros degraus da sua existência.
De súbito, a pandemia enclausurou-a. Agora, filhos e netos só comunicavam com ela através de um pequeno retângulo luminoso, com as vozes distorcidas, o que lhe provocava maiores dificuldades em identificá-los, já que, na confusão da sua memória, caras, vozes, tempos, tudo se misturava aleatoriamente. Entretanto, a covid19, o terrível “bicho” provocador de tantos medos também atacava aquele lar, fazendo algumas vítimas, tendo ela mesma que ser levada ao hospital por problemas respiratórios, sendo submetida e imensas e incómodas zaragatoas, tudo a indo afastando cada vez mais daqueles que a prendiam à vida, sem visitas, sem palavras, sem os beijos e afagos. Veio então o breve desconfinamento, talvez uma pequena luz de esperança e, em poucos e breves momentos, já vinham ter com elas aquelas figuras que seriam as pessoas que ela havia amado, mas cujos nomes já não conseguia identificar:
- Aquele rosto pertence a quem? Quem são estas meninas tão belas e sorridentes? De quem é esta voz que me canta músicas antigas?
Para tentar corresponder a estes afagos que sabia serem de alguém que lhe dizia muito e cujas vidas também lhe pertenceriam, Natália sorria, cantava e o seu olhar tinha laivos luminosos que a transportavam a um passado mais colorido e vivo.
Com a degradação da sua saúde, ficaria então acamada, o que, por questões de segurança, impediria tantas visitas. Agora e de forma muito breve, de vez em quando, vinha uma daquelas pessoas, já não sabia bem quem, e ela olhava vagamente o infinito, como a procurar na distância um sentido para as memórias perdidas.
E, enquanto o coração lhe ordenasse, ficaria ali, à espera, até que esta solidão terminasse no fim da viagem.

Não sei o que poderíamos ter feito melhor, mas nós, como sociedade, temos feito muito mal a quem nos transmite tanto do que nós sabemos!
Se exigimos educação gratuita e universal, desde as creches, para os nossos filhos, porque é que não temos o mesmo poder reivindicativo para exigir que o Estado cumpra a função de cuidador dos nossos idosos, com uma rede capaz de lares, centros de dia e casas de repouso, com um sistema eficaz de apoios domiciliários, sem estarmos dependentes de instituições de solidariedade social, sem estarmos subjugados a esta caridadezinha disfarçada que esconde chorudos e lucrativos negócios em que os velhos são espoliados dos seus parcos haveres? Porque é que os nossos idosos mais velhos são obrigados a sobreviver de reformas miseráveis e assistimos indiferentes ao regateio anual dos humilhantes aumentos de dez euros? Só, talvez, quando tivermos uma sociedade que respeite e dignifique mais os seus velhos poderemos ter um mundo mais humano e solidário. Como homenagem a estes seres, os nossos velhos mais queridos, transcrevo a letra, na versão original para a não estropiar com qualquer tradução menos conseguida, de uma música de Jacques Brel, em que ele descreve a solidão e a degradação que vivem muitos dos nossos velhos durante os seus derradeiros momentos de vida.

Les vieux ne parlent plus
Ou alors seulement parfois
Du bout des yeux

Même riches ils sont pauvres
Ils n'ont plus d'illusions
Et n'ont qu'un coeur pour deux

Chez eux ça sent le thym
Le propre
La lavande et le verbe d'antan

Que l'on vive à Paris
On vit tous en province
Quand on vit trop longtemps

Est-ce d'avoir trop ri
Que leur voix se lézarde
Quand ils parlent d'hier

Et d'avoir trop pleuré
Que des larmes encore
Leur perlent aux paupières

Et s'ils tremblent un peu
Est-ce de voir vieillir
La pendule d'argent

Qui ronronne au salon
Qui dit oui qui dit non, qui dit
Je vous attends

Les vieux ne rêvent plus
Leurs livres s'ensommeillent
Leurs pianos sont fermés

Le petit chat est mort
Le muscat du dimanche
Ne les fait plus chanter

Les vieux ne bougent plus
Leurs gestes ont trop de rides
Leur monde est trop petit

Du lit à la fenêtre
Puis du lit au fauteuil et puis
Du lit au lit

Et s'ils sortent encore
Bras dessus bras dessous
Tout habillés de raide

C'est pour suivre au Soleil
L'enterrement d'un plus vieux
L'enterrement d'une plus laide

Et le temps d'un sanglot
Oublier toute une heure
La pendule d'argent

Qui ronronne au salon
Qui dit oui qui dit non
Et puis qui les attend

Les vieux ne meurent pas
Ils s'endorment un jour
Et dorment trop longtemps

Ils se tiennent par la main
Ils ont peur de se perdre
Et se perdent pourtant

Et l'autre reste là
Le meilleur ou le pire
Le doux ou le sévère

Cela n'importe pas
Celui des deux qui reste
Se retrouve en enfer

Vous le verrez peut-être
Vous la verrez parfois
En pluie et en chagrin

Traverser le présent
En s'excusant déjà
De n'être pas plus loin

Et fuir devant vous
Une dernière fois
La pendule d'argent

Qui ronronne au salon
Qui dit oui qui dit non
Qui leur dit: Je t'attends

Qui ronronne au salon
Qui dit oui qui dit non
Et puis qui nous attend

 

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