Projeto REEI | Jorge Carreira Alves

Os Portugueses “Roma”- que não são de Roma

(a propósito de uma ação de curta duração realizada no AEGMPOENTE sobre "História e Cultura Cigana, Comunidades Ciganas e Educação")

Nesta época de desinformação em que facilmente arranjamos bodes expiatórios para as nossas frustrações e para o nosso descontentamento, quando se atacam comunidades ciganas, tentando expulsá-las dos nossos arredores por só trazerem males, violência e vergonha, tratando-os, quantas vezes, como se fizessem parte de um grupo alienígena, apátrida, sem cultura e sem valores, nesta época em que é cada vez mais fácil atacar os que, aparentemente, nos parecem inferiores a nós, às nossas “boas maneiras”, à nossa “irrepreensível justiça”, que sabemos nós, para além dos mitos e estereótipos, de quem compartilha, há mais de cinco séculos, o nosso território, sendo tão portugueses como todos nós, que nos dizemos tão orgulhosos da nossa Pátria? Dá que pensar o facto de convivermos com estas comunidades há bem mais de quinhentos anos e pouco sabermos delas: Quais as suas origens? Que língua falam entre si? Através de que manifestações artísticas eles transmitem os seus sentimentos e emoções? De que vivem e como vivem? No passado dia 17 de novembro, no nosso agrupamento escolar, realizou-se uma ação de curta duração, no âmbito do Projeto REEI, dinamizada por Cláudio Garcia, mediador cultural e mestrando em Sociologia da Educação, muito esclarecedora para quem teve o privilégio de participar, confrontando-nos com muitos dos nossos preconceitos e estereótipos em relação às comunidades ciganas. Começando por nos mostrar quais as suas origens, este palestrante que se nos apresentou como “português cigano”, demonstrou que, apesar de ainda existirem muitas dúvidas acerca do modo como se tornaram nómadas e errantes pela Europa e pelo mundo, está geralmente aceite, por algumas evidências genéticas, linguísticas e outras, que este povo terá vindo do Norte da índia, tendo-se disseminado em diferentes épocas pela Europa, daí, até ao resto do mundo, onde existem comunidades significativas. Esta origem indiana está claramente inscrita na bandeira, um dos símbolos unificadores destes povos, assim como em algumas palavras da sua língua, o “romani”, que têm alguns pontos de convergência com o Sânscrito, língua antiga utilizada em textos religiosos dessa área geográfica. Também no nos apresentou o seu hino, música em que se demonstra o caráter errante e resiliente destes povos, a quem deveremos chamar Roma, pelas conotações negativas que a palavra “cigano” tem vindo a ter ao longo de tantos anos de segregação e ostracismo. Se, como se comprova em diferentes fontes, nomeadamente em textos do “Cancioneiro Geral” de Garcia de Resende, ou em alguns autos de Gil Vicente, a sua presença entre nós tem vindo a ser tão constante, há tantas centenas de anos, como é que ainda muitos de nós os consideramos portugueses de segunda ou não os aceitamos como portugueses? Se, como Cláudio Garcia comprovou, as leis anti-ciganos, as leis segregacionistas foram uma constante até há bem pouco tempo, sabemos que a sua presença nos tem sido muito útil em muitos momentos da nossa história: quantas vezes não foram os ciganos que forneceram aos nossos antepassados agricultores os animais para os seus trabalhos agrícolas? Quantas vezes não foram eles que providenciaram muitos bens e mantimentos nos lugares mais recônditos e inacessíveis? Quantas vezes não foi a eles que recorremos para comprarmos umas belas pechinchas a preços mais favoráveis? Para além disso, apesar desta constante aversão a que muitos de nós os votaram, certo é que a sua cultura e o seu modo de vida também nos traziam algum encanto; lembremo-nos, por exemplo, de algumas cantigas bem populares de alguns dos nossos artistas mais famosos em que os ciganos nos cativavam, pela sua vida misteriosa e livre, pela beleza de suas mulheres, por uma certa resistência às normas e convenções que nos reprimem. Recordo-me, desde já, de três canções: um fado, cantado por muitos dos nossos mais famosos fadistas, (O Fado do Cigano”, em que a sua vida de liberdade é a alegria de suas músicas nos causa imenso fascínio, lembro-me ainda de uma música bem famosa, uma versão de uma música estrangeira, “Cara de Cigana”, que por cá foi interpretada pelo José Malhoa, ou a canção do Paco Bandeira, que retratava a beleza de uma mulher: “Mary Lúcia era a moça mais bonita das ciganas” … Por outro lado, muitos dos estereótipos que nós criámos acerca dos ciganos não passam disso, apenas mitos e estereótipos, alguns dos quais foram assimilações da nossa própria cultura e dos nossos hábitos que estas populações, por viverem mais fechadas e isoladas, mantiveram, como são os casos dos lutos, das roupas negras, das fugas dos namorados para consumarem clandestinamente os seus casamentos etc. Em conclusão, este encontro com Cláudio Garcia serviu também para nos afastarmos de muitos dos nossos preconceitos, compreendendo que os ciganos, ou os povos Roma não vivem apenas em acampamentos miseráveis, sem quaisquer condições de salubridade, não vivem todos do Rendimento Social de Inserção, como muita gente quer fazer querer, nem todos são iletrados e completamente excluídos do nosso sistema de ensino… Contudo, a nossa escola, tão formatadora e tão impositora de regras de conduta e de valores humanistas, deveria ser mais aberta a esta cultura milenar, com língua e formas de manifestações artísticas próprias, promovendo uma verdadeira integração, porquanto, ao “impor” os valores da nossa cultura dominante, poderá estar a destruir aos poucos aquilo que os seus ancestrais têm vindo a transmitir, fazendo com que os jovens que frequentam o nosso sistema de ensino não assimilem muito da sua própria cultura. Por incompatibilidade com as minhas atividades letivas, não pude assistir ao final deste tão produtivo encontro. E uma das questões que eu gostaria de ter colocado a Cláudio Garcia, o qual, tenho a certeza, me responderia sem qualquer entrave e da forma mais sincera, tendo em conta o seu passado familiar Roma, de que muito se orgulha, uma das minhas questões seria precisamente: se a resistência de muitos ciganos a mandarem as suas crianças à escola não se prenderá também com o medo de que elas percam a sua identidade e fiquem no desconhecimento dos seus valores e tradições? Outra questão que eu julgaria pertinente seria saber se, realmente, as novas gerações ainda têm um conhecimento profundo da cultura Roma, da sua língua, da sua história, das suas manifestações artísticas. Sem dúvida, através do Projeto REEI, tivemos uma tarde bem rica de transmissão de conhecimentos e de derrube de muitos mitos que alimentam os nossos preconceitos, com alguém plenamente conhecedor da história e cultura Roma. Por isso, digo: antes de sacudirmos de nossas presenças os nossos compatriotas Roma, por os julgarmos criminosos, pouco asseados, vivendo fora das normas, parasitas dos nossos impostos, seria bem melhor conhecê-los, a si e à sua cultura.

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