Ana Margarida Silva |  Murmúrios Fotográficos

Murmúrios Fotográficos
São várias as curvas da existência e, no meio de aguaceiros e procelas, há sempre dias felizes. Importa, pois, atrelar a caravana ao carro e seguir ou, à maneira de Sísifo, empurrar encosta acima o pedregulho da resiliência. O que importa é partir. Nascemos, saímos do berço, partimos pela estrada da vida feita de curvas e contracurvas, movimentos deslizantes, acelerações, lombas, imprevistos, horizontes fabulosos. Nela não caminhamos sós: ao volante estamos, mas connosco seguem os seres que povoam a nossa frágil existência, os que estão de facto, que partilham a mesma condição humana feita de alento e seus antónimos e os que já partiram. Esses seres têm lugar cativo, não há quem jamais os substitua no nosso caminhar. São insubstituíveis e deixam gravada na pele, na alma, no coração e para todo o sempre a marca indelével da sua riqueza interior, da sua sabedoria, da sua generosidade. A sua passagem nesta paisagem terrena não é em vão. Essas almas que nos acompanham diariamente são como os gatos: deixam-nos partir, seguem-nos de modo discreto e quando nos olham, com o seu olhar imenso, exultam de felicidade. O que importa é partir! Sempre! Com desassombro e coragem, acelerar e buscar o horizonte, que ao longe nos acena, e desfrutar, com a força da mente e audácia no coração, tudo quanto nos surja ao caminho. Não partimos sós e, a dada altura, maravilha das maravilhas! Encostamos à berma com o motor a ronronar com o desejo de nos dissolvermos no maravilhoso cosmos e, eis que surge o Outro, Anjo terreno, que transita a pé, com ou sem fardo, de bicicleta, de cabelo ao vento, refletindo sobre o sentido da vida. Com ele trocamos impressões e caminhamos juntos. A viagem prossegue, na via poeirenta ou na autoestrada, e todos a realizam. Num ou noutro momento existencial, a superação de um mal-estar passa pela fuga do mundo real e o consequente ingresso num lugar distante capacitado para a redenção, quer se trate de uma ilha perdida na névoa do tempo, num continente ou numa paragem além-túmulo. Passeios junto ao Farol do Penedo da Saudade e consequentes meditações sobre a nossa cada vez maior semelhança com Sísifo remeteram-me para a obra O Luto de Elias Gro (2015), de João Tordo: a agonia do protagonista, Sísifo enfraquecido, impele-o ao trânsito terreno e à busca de uma ínsula onde possa exilar-se. Deparando-se com curvas imprevistas na estrada da vida e, tornado “invólucro cheio de coisa nenhuma”, o narrador é levado a mergulhar num espaço psicológico de dor e no desejo de solidão extrema numa terrae incognitae. Vivenciando a perda da mulher e da filha, o narrador parte em demanda de um lenitivo para a sua fratura interior, pretendendo colocar em pausa a sua existência e acabando por estabelecer, ao longo da sua peregrinação, um vínculo fraterno com o Outro, amarrando-se, de igual modo, espiritualmente com a natureza e a esfera divina. O exílio voluntário, numa ilha soturna fustigada por ventos hostis, enfatiza a via-sacra do narrador, solicita a sua sensorialidade, vindo o retiro a revelar-se como solução apaziguadora. É no espaço insular, mero desvio na caminhada terrena, que a personagem estilhaçada, vestida das roupagens do ermita, se detém perante a vida, sustendo a sua travessia num território envolvido pelo abraço marítimo, acabando por aí efetivar a redentora metamorfose. Ciente da sua ambivalência pelo conforto e simultâneo terror que lhe nascem da ideia de se afastar da restante Humanidade, o narrador não nega, contudo, o apelo da soturna ilha e, embora hesite quando confrontado com a solidão e inclemência que emanam do farol, acaba por aí fixar residência, sentindo-se como condenado na antecâmara da morte, detendo-se no trilho da vida, refém de parênteses espácio-temporais. Esta pausa, como a que todos nós acabamos por empreender, possui um ritmo peculiar, feito de avanços e detenças, como que obedecendo, de modo condizente, aos ritmos da vida. O narrador, de fortes feições românticas, presente em O Luto de Elias Gro (2015) sustém, pois, a sua caminhada na clausura de um farol desativado e isolado. Porém, a detença não reenvia para o isolamento, pois, ainda que deseje a imobilidade e o sedentarismo, a personagem caminha na presença de si, encara-se, sendo acionada a expedição à volta do quarto e efetivada, portanto, a “viagem imóvel dentro da consciência” (De Maistre), pelo viés da memória, ativada pelo álcool, entrando em diálogo consigo e com os seus fantasmas, percorrendo o espaço interior e pondo a nu reflexões sobre o sentido da vida. Encarado como espaço geográfico de suspensão no caminho trilhado, a ínsula é, contudo, sinónima de encontro com o Outro e redenção: surgem diante do narrador bons samaritanos donos de gestos desapegados de amor ao próximo, que irão resgatá-lo da sua insularidade e ensinar-lhe o caminho da salvação. É esse, afinal, o percurso que todos realizamos, na presença de si e do Outro, rumo à redenção ou, dito de outro modo, rumo ao sucesso: a certeza de que o quotidiano nos condena a empurrar o pedregulho encosta acima e que a resiliência é fundamental para que esperança e náufrago não afundem junto ao farol…

 

 

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