“Ser Solidário” – o concerto de uma vida, uma vida num concerto
A propósito de…|Jorge Carreira Alves

Acho que só me posso sentir um grande privilegiado ao poder dizer que pude assistir, nos finais de 1981, num pequeno teatro de Lisboa, ao espetáculo de uma vida; a um concerto de música popular com as memórias mais indeléveis dos nossos passados recentes, com as dúvidas e as hesitações das questões mais presentes (naquele presente de tantas turbulências e tantos caminhos transformados em becos), e a ténue luz de alguma esperança, daquela esperança de um mundo utópico de humanidades futuras e, apesar de todas as contrariedades, possíveis… tudo isto e muito mais, que eu tive a feliz oportunidade de viver, se passou e experimentou naquele humilde “Teatro Aberto”, numa suave noite de outono, aquela noite por muitos outros lembrada pela trágica morte de um Primeiro Ministro que só a morte transformou em herói ou mito adorado, que de grande poeta tinha o nome, mas que tão prosaico foi, sobretudo para mim, jovem romântico de inatingíveis utopias, que tanto mais queria do que o pouco que esse e outros que nos governavam haviam dado. Nesse espetáculo a que assisti, o artista inconformado, que nunca se desviou dos seus ideais de humanidade, compartilhou em canções, em desabafos, em gritos revoltados e até numa mordaz ironia toda a sua vida de incertezas que, afinal, tão semelhante à nossa (ou à minha), que ali o víamos e ouvíamos, se revelava. Tive a sorte de poder ficar numa das primeiras filas da plateia, podendo sentir-lhe cada respirar, cada suspiro magoado, mas também me sentindo o primeiro alvo de suas iras, tão próximo estávamos, que quase lhe podia apertar a mão, num solidário gesto de fraternidade, ou puxá-lo nos momentos em que ele nos levava a naufragar naquele mar de descrenças que era aquele presente triste das desilusões trazidas nesse outro dia 25, não dia de liberdade, mas dia cinzento de um outono que se perpetuava. Mas falemos do espetáculo:
Depois de nos sentarmos no lugar previamente reservado, na espectativa de podermos vir a assistir a um espetáculo de excelência, já que os músicos e o cantor isso garantiam, ouviu-se na instalação sonora daquela sala um apelo repetido, como um chamamento: afinal, um excerto de uma antiga canção do cantor, dos tempos dos medos e das ações clandestinas: “Eh, companheiro!” Este apelo antigo transportava-nos para aquele ambiente de perpétua luta pelos valores da justiça e da liberdade que tanto inspiraram as mobilizantes canções deste inconformado artista. Contudo, quando ele entrou, num passo lento de peregrinante, foi essa imagem de um contínuo caminhar, de uma luta sem fim que nos transmitiu: “Que caminho tão longo, que viagem tão comprida…” era uma música desconhecida e chamava-se muito propositadamente “Travessia”. Só que, após um primeiro andamento nostálgico e plangente, uma possante banda de “Blues”, elétrica e altissonante, fez-nos transportar às lutas negras de Nova Orleães ou de Chicago, as mesmas lutas que nos unem a todos, pretos, brancos, explorados de todo o mundo. Ainda num tom de balada jazzística, seguiu-se a recordação de uma canção antiga, uma grande música com um grande poema: “Queixa das Jovens almas Censuradas”, de Natália Correia, relembrando o seu inconformismo e rebeldia, mesmo perante os seus correligionários, como quem sempre vive do avesso das convenções. Logo após, o artista jogava a sua crítica irónica e mordaz sobre aqueles que ditam leis nos cafés das tertúlias intelectuais da cidade, clamando contra o sistema, contra a incoerência dos outros, sendo esses mesmos os mais incoerentes e os mais recetores das benesses do dito sistema que tanto dizem combater, com a sua confortável posição de citadinos pequeno-burgueses de vida suave, sento exemplo desses “clubes” do intelecto o célebre café “Vá Vá”. Para finalizar este primeiro grupo de canções, aquelas que ocupam também a face A do disco 1 do duplo álbum do mesmo nome, “Ser Solidário”, o artista relembrou uma sua música antiga, uma música cheia de filosofia, daquela filosofia simples e clara que só os artistas do povo sabem condensar em palavras simples, “A Morte Nunca Existiu”, do poeta popular António Joaquim Lança, um simples pastor alentejano que demonstra, com argumentos inquestionáveis a não existência de uma entidade, a morte, que consiga “matar milhares ao mesmo tempo, uns no estrangeiro, outros cá”. Se as surpresas deste inesquecível concerto já haviam sido bastantes, só ao ouvirmos estas quatro primeiras músicas, o que se seguiu foi toda uma nova abordagem de caminhos que nunca tínhamos observado percorrer por este artista. Ele, que apontara o fado como “o faduncho choradinho de tabernas e salões”, agora, alguns anos após essas lutas e essas verdades inquestionáveis, afirmava que o fado, fruto da mais genuína criação popular, devia ser respeitado, “tratado com pinças”, já que a tristeza e a amargura que, quantas vezes transmite, não são quaisquer sinais de fraqueza ou inferioridade, ao contrário do otimismo bacoco quantas vezes propalado pelos incandescentes e belicosos hinos revolucionários. E, para surpresa dos mais distraídos, acompanhado pelos mestres do fado António Chaínho e Armindo Neves, o artista interpretou dois fados, o “Fado da Tristeza” e o “Fado Penélope” que, não sendo tradicionais, já que eram de sua autoria, poderiam ombrear com os mais belos fados existentes até então. Prosseguindo na tradição musical lisboeta, este portuense de gema cantou talvez a música que ficasse mais conhecida deste espetáculo “Qual é a tua, ó meu”, onde, através de engenhosos trocadilhos com nomes de bairros de Lisboa, fez uma crítica ao saudosismo do antigo regime. Por fim, uma “Chulinha”, “Eu vim de longe, eu vou pra longe”, fazia o balanço de toda uma vida de luta, em três momentos distintos: desde a esperança dos primeiros tempos após o 25 de abril, com o seu regresso do exílio e as coisas que se começaram a construir, passando pela “vingança” contrarrevolucionária (para alguns, a “retoma democrática”) do 25 de novembro, com todas as desilusões, descrenças e desistências, até ao porvir de esperança que ainda seria possível alimentar “sempre que abril aqui passar, dou-lhe este farnel para o ajudar”. Se o espetáculo terminasse neste ponto, já poderíamos dizer que tínhamos assistido a um espetáculo de uma vida, tão ricas e empolgantes já tinham sido as emoções transmitidas. Contudo, José Mário Branco, que não é artista de se contentar com o pouco, ainda tinha muito para nos ofertar. A segunda parte deste espetáculo iniciou-se com uma música que é toda uma afirmação da forma de vida que deve ter um artista: uma vida de uma constante “Inquietação”, de constante procura, de constante insatisfação, qual o grande poeta Fernando Pessoa que se cita no final do magnífico texto desta primeira música a que assistimos no reinício deste concerto: “Essa coisa é que é linda”. E, para demonstrar que para si, a nível musical, não há limites, José Mário Branco juntou neste tema o dedilhar da guitarra de fado com o swing mais contagiante do jazz. Se de “Inquietação” se falou na primeira música, a que se seguiu transmitiu um novo ensinamento, através das palavras sábias de Bertold Brecht: que não nos devemos prender a um momento, já que a vida é como as águas de um rio: “Não te prendas a uma onda qualquer”. As músicas “Linda Olinda” e “Treze Anos, Nove Meses” foram mais dois momentos deliciosos de puro prazer musical, pelo arrojo, pela beleza das palavras, por podermos apreciar a maravilhosa execução de verdadeiros mestres: Júlio Pereira, Mário Barreiros, só para referir dois dos mais conhecidos. A parte final deste maravilhoso momento iniciou-se com uma música plangente, em forma de lamento, em que o artista nos avisava que “sopram ventos adversos”, tendo como parte central uma excelente execução de (maiden voyage), de Herbie Hancock, uma música em que se declara a liberdade, a inquietação de conhecer o outro, através da improvisação dos instrumentos musicais, tendo esta música sido rematada pelo retomar do início de “Sopram Ventos Adversos”, mas, desta vez, num grito de urgência que a todos chamava para a luta. Essa luta veio a ser reafirmada na canção seguinte, “Eu vi o meu povo a lutar”, banda sonora do filme “Confederação”, de Luís Galvão Teles, música agregadora e apelativa, lembrando os tempos gloriosos do GAC (Grupo de Ação Cultural – Vozes na Luta), com o apelo altissonante dos tambores, a vibração metálica das cordas das violas tradicionais, os coros telúricos e populares das multidões empreendedoras das grandes mudanças do mundo. Assim despertados e mobilizados, não estávamos à espera do que se seguiria: depois de tantas lembranças, tantas emoções, tantos momentos admiráveis de beleza e arte, o artista, o “ser solidário”, o “ser solitário” tinha ainda uma última palavra, um último grito com que nos iria atingir e acordar; um grito de revolta e de esperança, um estertor de desespero e de última entrega; aquela canção, que mais que uma canção, era o resumo e o manifesto de toda uma vida para os outros, para a humanidade, como um farol que, apesar das descrenças e derrotas, ainda ilumina e incendeia: era o momento, para o qual ninguém estaria preparado, de ouvirmos FMI. Para que entendêssemos a intenção do artista ao escrever e interpretar aquele texto, José Mário Branco não deixou de fazer uma introdução explicativa, informando-nos que teria sido escrito de um só jorro, num dia em que as questões sobre as opções de vida tomadas até então se mostravam mais candentes, que tinha sido apresentado pela primeira vez num espetáculo no dia 1º de maio de 1979 e que, apesar de algumas referências já desatualizadas (naquele dia de dezembro de 1981, iria repetir na íntegra.E ninguém poderá imaginar o turbilhão de emoções que se seguiu: Em princípio, pareceu-nos que, embora revoltado, se tratava de um texto cheio de mordaz ironia, tão intrínseca a quem na rebelde cidade do Porto nasceu, onde se espelhavam as nossas incoerências, o nosso alheamento perante as desventurosas voltas do mundo, só interessados nas telenovelas, no futebol, nos “ensinamentos” enlatados das alienantes televisões, do nosso conformismo, quando deixamos e participamos na eleição confortável daqueles que pouco farão por nós, por medo de optarmos por percursos mais radicais, votando sempre nos moderados: “na esquerda moderada, para as sindicais, no centro moderado nas deputais, na direita moderada nas presidenciais, e assim deixando ir o país para o mais absoluto marasmo, vendendo-o ao poder económico estrangeiro. No entanto, a partir de certa altura, este grito deixa a ironia para passar ao desespero, culpando-nos a todos por não conseguirmos ser felizes: “Quero ser feliz, porra! Quero ser feliz, agora!”, acabando na frase continuamente disparada sobre todos nós, que nos doeu como facadas, ao nos revermos na nossa própria impotência, na nossa inércia, na nossa culpa: “A culpa é vossa! A culpa é vossa” a culpa é vossa!”, terminando quase num estertor de agonia suplicante, ao chamar pela mãe, num regresso impossível ao início da vida.
Mas foi com essa súplica, com essa procura do colo materno que José Mário Branco, após dizer: “Eu quero morrer. Eu quero desnascer”, foi buscar novas forças para acender, embora ténue, embora vacilante, a luz da esperança, a luz de um futuro melhor e mais humano encontrado na força belicosa dos tambores de Lavacolhos, no azul das gangas dos trabalhadores da Lisnave, numa canção inventada numa viagem de fraternidade e ouvida na noite de todas as esperanças possíveis: “Grândola, vila morena”. E, com esta força reencontrada no povo mais genuíno, o artista solidário e solitário entregava-se-nos, como se nos desse toda a sua vida, como se compartilhasse connosco toda a sua arte. Foi destroçado com tantas e tão avassaladoras emoções que me ergui daquela cadeira, quando José Mário Branco interpretou “Ser Solidário”, um hino de um artista solidário e solitário. E, como tanto aprendi nessas quase duas horas de espetáculo, permitam-me o arrojo de “roubar” as últimas palavras do artista no texto FMI, embora alterando-lhe a rima e distorcendo-lhe a métrica.

Sou o Jorge Carreira Alves,
60 anos, de Leiria,
Muito mais vivo que morto,
Contai com isto de mim
Para ensinar… e para o resto.

Design by JoomlaSaver