A PROPÓSITO DE …|Jorge Carreira Alves


Inicio aqui uma série de escritos um pouco vagos, deambulantes, ao sabor dos meus pensamentos, cujo único tema é não ter um tema pré-definido. E como primeira crónica destes meus devaneios não achei melhor do que falar da matéria-prima de que estes textos são constituídos: as palavras; as palavras que marcam, as palavras que ficam, as palavras que voam e se esquecem, as palavras… e como nós as usamos! Sempre amei as palavras. Sempre admirei a sua força, sempre adorei senti-las, nas suas formas, na sua musicalidade, nas suas cores vibrantes ou nos seus aromas subtis, em tudo aquilo que elas me transmitem e ensinam. Sempre admirei aqueles que desta inesgotável matéria-prima fazem arte, a mais nobre e profunda das artes: a poesia. E, se Portugal, ao que se diz, é um país de poetas, como é que as deixamos assim desprezar, menorizar, abastardar, truncando-lhes o sentido, empobrecendo-as de ideias, deixando-as desfalecer no esquecimento e na ignorância? Como é que nos atrevemos a deformá-las para transmitirem, em forma de supostas verdades, as mentiras com que nos tentamos evidenciar nas nossas profissões, na política, nas instituições, na sociedade em geral, até com aqueles a quem dizemos serem os nossos melhores amigos? Às vezes ponho-me a pensar nas palavras que dizíamos outrora e que agora caíram em desuso, naquelas fortes e pujantes palavras que transmitiam ideais tão luminosos pelos quais era tão estimulante lutar: a liberdade, a igualdade, a fraternidade! Agora, pelo contrário, vemo-nos reduzidos àquelas pobres palavras que, por modismos bacocos, provincianismos parolos ou simplesmente por termos empobrecido o nosso léxico quotidiano, utilizamos: umas, por empréstimo de outras línguas que nós, na nossa eterna subserviência aos estatutos de superioridade usamos muito veementemente, para nos empertigarmos na nossa suposta sapiência; outras, muito mais comuns, utilizadas abusivamente como muletas, já que a nossa riqueza vocabular não admite palavras com mais de cinco caracteres, ou na nossa memória smartphonizada só cabem duzentas palavras simples, sem derivações ou associações lógicas.
Isto tudo para dizer o quanto me entristece ver-nos a todos, grandes defensores dos valores patrióticos, sobretudo quando se trata de campeonatos de futebol, tratarmos tão mal o mais rico património que temos, aquele que realmente nos une como cidadãos de vários continentes, de muitas etnias, de incontáveis heranças culturais: a língua portuguesa.
Não basta só citar o poeta quando ele diz “a minha Pátria é a língua portuguesa”, ou falarmos do “grande Camões”, quando quotidianamente nem uma página de um livro conseguimos ler, muito menos falar sobre o que se leu, ou, pior ainda, transmitir ideias originais.
Hoje, quando queremos demonstrar a nossa sabedoria, vamos à internet surripiar algumas citações, sem sabermos sequer se são credíveis, pomos-lhe o nosso nome e fazemos um enorme banzé se alguém nos desmascara e descobre a nossa trafulhice. No entanto, se formos verdadeiramente postos à prova para alguém saber se, realmente, temos conhecimentos profundos do que dizemos defender, no caso da língua e da literatura portuguesas, aí: não lemos “os Maias” porque é uma seca e fizemos os exames recorrendo aos resumos que circulam por todo o lado; não lemos Saramago porque não entendemos aquela escrita sem parágrafos e sem pontos finais, para além de outras coisas que não vêm a propósito; não lemos os poetas (Bocage, Antero, Florbela, Sophia, Mourão Ferreira, Andrade, etc.) porque são todos muito complicados, mas adoramos dizer que até fazemos umas rimas, fazemos hip hop, temos umas coisas escritas na gaveta, etc. etc; não lemos os mais antigos porque é uma linguagem desatualizada que não se entende; não lemos Camilo, por isto, Garrett, por aquilo, Nemésio, Torga, Miguéis, Cesário e muitos outros por aqueloutro, refugiando-nos sempre nas nossas labutas, na nossa preguiça, nas outras prioridades para abandonarmos o culto das palavras, aquelas “coisas” imateriais e ao mesmo tempo tão abrangentes que são o elo mais poderoso que nos prende; entre nós e a nossa família, entre nós e os nossos amigos, entre nós e este mundo que habitamos. Lembro-me de, antigamente, fazer pequenos negócios com as pessoas simples, nos mercados e nas feiras e, ao perguntar-lhes se me não dava um papel para comprovarmos a validade das ditas transações, eles diziam-me: “Palavra dada é palavra honrada!” E, de tal forma o diziam e com tal convicção, que eu lhes apertava a mão, faziam-se os negócios, e ainda hoje não me arrependo de tê-los feito. Hoje, nos grandes centros de consumo, dão-nos cartões de clientes, atribuem-nos pontos, descontos e outras benesses, mas as benesses, os lucros e todos os proveitos vão para esses grandes mercadores que nos impelem a consumir viciada e aditivamente, apesar da simpatia e das palavras amáveis que só enganam, só mascaram, só nos escravizam. Veja-se que os outrora “patrões”, os proprietários dessas empresas eram pessoas com rosto; agora não: são empreendedores, são investidores, são seres invisíveis que nos dominam, nos impõe o rumo das nossas vidas, porquanto são eles quem decidem as orientações políticas e económicas que nos regem com escondido pulso de ferro: os terríveis mercados que se “enervam” quando nós exigimos um pouquinho mais de justiça social e um pouco menos de usura.
Ao ver tanta hipocrisia, tanta mentira mascarada, tanta dissimulação, pergunto-me: que valor tem hoje aquilo que dizemos? As verdades de agora serão ainda verdades amanhã, ou só sobrevivem até ao primeiro clique de um “amigo” nas redes sociais? Como é que conseguimos deixar que as palavras já não permitam o convívio franco entre os amigos, agora que toda a gente passa o tempo a olhar para ecrãs, mesmo que esteja sentada lado a lado? Há pouco tempo, fui a um restaurante onde estavam famílias e casais de namorados. Em certa ocasião, reparei em dois jovens (namorado e namorada) que durante todo o jantar não haviam trocado palavra, só se ouvindo a voz indignada de um dos parceiros quando disse: “Estou aqui a pôr coisas do nosso jantar no Facebook e tu ainda não puseste nenhum like!” E a isto se terá resumido um jantar romântico de dois jovens. Talvez tenha de haver um esforço de todos para nos reapropriarmos das nossas palavras e fazermos delas o nosso privilegiado veículo de comunicação, de partilha de emoções, de enriquecimento cultural e de invenção artística.
Por tudo isto, façamos do respeito das palavras o nosso modo de vida e veremos que nos tornaremos muito mais ricos, inteligentes e interessantes.

Design by JoomlaSaver