Cesário Silva |Onde é que tu estavas no 25 de Abril?


Questionado sobre onde estava no 25 de abril de 1974, regressei à minha infância e à minha terra natal, Vila Real de Santo António, junto à fronteira com Espanha. Tinha 10 anos de idade e frequentava a 4ª Classe.
Recordo que em casa, na manhã do dia 25 de abril, as coisas estavam aparentemente normais apesar da minha mãe me ter dito que algo se teria passado em Lisboa. Que havia ainda muito poucas informações, que era melhor não falar sobre isso e que deveria ir à escola.
Pequeno almoço tomado, pasta da escola às costas, lá fui eu, sozinho, como todas as manhãs, até porque a escola ficava perto de casa e não era hábito os pais acompanharem as crianças… outros tempos!
Chegado à escola não me recordo de conversas entre nós, os rapazes, que indiciassem qualquer informação sobre o que poderia ter acontecido durante a madrugada. Na realidade todo o tempo era aproveitado para jogar à bola, correr e saltar como se não houvesse amanhã.
Sobre a escola parece-me importante referir que era masculina, nessa altura, as crianças eram separadas: rapazes para um lado, raparigas para outro.
Às nove horas o habitual toque da campainha, a subida para o primeiro andar da escola e o aguardar da Sr.ª Professora Fernanda para podermos entrar.
Chegados à sala que estava com a porta aberta tive a minha primeira visão do 25 de abril.
Em cima de um escadote estava a D. Helena e em baixo a D. Xica que, com firmeza, tentava manter o equilíbrio da amiga. Ambas contínuas, designação que era dada à época às funcionárias que tinham a missão de preservar a limpeza da escola, fazer a vigilância das crianças e apoiar os professores em tudo o que fosse necessário.
A D. Helena de cima do escadote tentava a todo o custo retirar da parede a fotografia do Salazar que, pelos anos que lá estava, parecia ter ficado colada, de pedra e cal, à própria parede.
A D. Xica com as mãos firmes no escadote incentivava-a a fazer a força necessária a remover o quadro que tanto parecia inquietar. Após algumas tentativas foi finalmente removido da parede o Salazar. Percebi então pela expressão facial de contentamento que algo estava a acontecer. A D. Helena desceu do escadote e com a ajuda da amiga, deslocaram-no mais para a direita. Posicionaram o escadote defronte a outra fotografia, desta vez a do Américo Tomás, Presidente da República.
Concluída a operação de remoção das duas fotos recordo, ainda hoje, a pergunta feita pela D. Helena:
- Xica e o que faço ao Cristo?
Ao que a D. Xica de imediato respondeu:
- Deixa o Cristo, mulher, não fez mal a ninguém e já cá anda há muitos anos.
Nessa altura, a nossa professora, que vinha do gabinete do diretor da escola, entrou na nossa sala de aula, deu-nos ordem de entrada e disse para nos sentarmos.
As primeiras palavras terão sido no sentido de que não iria haver aulas nesse dia, tendo explicado os motivos que, confesso, já não terei ouvido com a atenção devida, por ter ficado muito animado por não haver aulas e poder ir brincar.
O dia correu com toda a normalidade para crianças de 10 anos de idade. Dia sem aulas, brincar na rua, jogar à bola, ao pião, ao berlinde, enfim o que era normal fazer naquela época e ter na rua o maior parque de diversão.
Ao jantar, na presença do meu pai, da minha mãe e da minha irmã, com dezassete anos, tivemos oportunidade de falar e, sobretudo, ouvir e entender o que se estava a passar.
O meu pai era um homem com alguma intervenção política e explicou-nos, com emoção, que tinha acontecido uma revolução e que a liberdade e a democracia seriam muito importantes para as pessoas e para o nosso país.
Foram muitas as perguntas que terei feito, algumas respostas que já não recordo, mas lembro-me de ter perguntado se a partir dessa altura já poderíamos falar de coisas relativamente às quais nos era anteriormente recomendado não falar. Uma que sempre me intrigou foi, anos antes, ver uns envelopes sobre os quais não deveríamos falar e que eram entregues a alguns amigos do meu pai que passavam lá por casa. Explicaram-me que se tratava, nada mais nada menos, de informação sobre as eleições de 1969, em que a oposição ao regime depositava esperança para que alguma mudança pudesse acontecer. Não sei mesmo se não se trataria do boletim de voto para introduzir na urna, mantendo desta forma o sigilo sobre as opções partidárias de cada um.
Falou-se também da PIDE e de alguns nomes que lhe estavam associados. Da suposta fuga de alguns e da possível prisão de outros. Falou-se de tanta coisa em tão pouco tempo que nem conseguia processar toda a informação. Na minha cabeça havia ainda muitas outras perguntas a fazer sobre coisas que durante alguns anos fui ouvindo por meias palavras, não as entendia, mas que agora sentia a curiosidade de poder finalmente ouvi-las e, sobretudo, conhecê-las na íntegra.
Uma dessas curiosidades girava em torno da minha tia Manuela, irmã mais velha do meu pai que, dias mais tarde, quando questionada por mim acabou por contar, numa linguagem entendível para uma criança de 10 anos, o que anos antes se tinha passado. Sim, a minha tia Manuela tinha em tempos sido levada pela PIDE para ser interrogada, por ter sido apanhada com um cesto de verduras que escondiam alguns livros que estavam proibidos. Lembro-me de um relato emocionado sobre o que aconteceu e sobre a suposta dúvida que persistiu sempre na sua cabeça. Na verdade, a minha tia sempre achou que teria sido denunciada por um outro irmão dela e do meu pai. Dizia a minha tia que esse irmão teria bufado à PIDE a informação, dando a conhecer que ela iria transportar, no cesto, os tais livros. Já nessa altura as famílias tinham destas coisas.
Mas, voltando ao relato, contava a minha tia que tinha estado durante muitas horas, um dia e uma noite, em pé, sem se poder sentar, com molas da roupa presas na cabeça de cada um dos dedos das mãos, com um foco sobre os olhos e que a pergunta que lhe era feita era sempre a mesma:
Quem te deu os livros que trazias no cesto?
Num misto de emoção e algum heroísmo, lembro ainda hoje que me disse:
- A tia mijou-se toda, mas nunca lhes disse de quem eram os livros. Acabaram por me deixar vir embora…
Percebi melhor que a falta de liberdade e a limitação no acesso à informação e à formação tinham sido verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento do país.
Passado pouco mais de um mês após o 25 de abril de 1974, os domingos, em Vila Real de Santo António, que eram habitualmente pacatos, passaram a contar com um novo colorido, com um maior frenesim e muitos, muitos espanhóis. Em 74 ainda a Espanha vivia os tempos da ditadura Franquista, da falta de liberdade e de democracia, quando os nossos vizinhos “descobriram” que a liberdade, acabada de chegar a Portugal, passava também pelo acesso a outras formas de cultura. Foram vários os domingos em que o Cine Foz realizou matinés que atraíram os nossos amigos espanhóis, quase na sua totalidade homens, para assistirem ao filme “Último tango em Paris”, um drama erótico que em 1974 era visto como o hardcore mais avançado para a época. Quando refiro matinés é porque nessa altura ainda não havia ponte e o acesso entre Portugal e Espanha era feito de barco, entre as 8.00 e as 19.00 horas, horário de funcionamento da fronteira entre os dois países, com recurso a passaporte ou, em alternativa, a um salvo-conduto que possibilitava aos cidadãos poderem viajar para o estrangeiro.
Passados que estão tantos anos sobre o 25 de abril de 1974 entendo hoje as expetativas que os adultos colocaram naquele momento. Percebo algumas das mágoas dos adultos de então que esperavam que a revolução dos cravos concretizasse alguns dos seus sonhos. Parece-me significativo destacar a importância da liberdade, dos valores da democracia e de uma cidadania ativa que nos faça continuar a acreditar nos valores de abril de 1974.
Termino com a letra da música “Somos Livres” tantas vezes ouvida na voz da Ermelinda Duarte e por todos nós tantas vezes cantada.
Ontem apenas
Fomos a voz sufocada
Dum povo a dizer não quero;
Fomos os bobos-do-rei
Mastigando desespero.
Ontem apenas
Fomos o povo a chorar
Na sarjeta dos que, à força,
Ultrajaram e venderam
Esta terra, hoje nossa.
Uma gaivota voava, voava,
Asas de vento,
Coração de mar.
Como ela, somos livres,
Somos livres de voar.
Uma papoila crescia, crescia,
Grito vermelho
Num campo qualquer.
Como ela somos livres,
Somos livres de crescer.
Uma criança dizia, dizia
"quando for grande
Não vou combater".
Como ela, somos livres,
Somos livres de dizer.
Somos um povo que cerra fileiras,
Parte à conquista
Do pão e da paz.
Somos livres, somos livres,
Não voltaremos atrás.

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