Jorge Alves |Onde é que tu estavas no 25 de Abril?


Como todas as noites, os quatro rapazes saíram de casa, após o jantar, para se embrenharem pela cidade que adormecia, para viverem as suas interessantes aventuras de juvenis e inocentes sonhadores, sempre em busca de novas experiências e de desconhecidas sensações.
Começaram por entrar no café acolhedor e fortemente iluminado, como já era seu hábito quase diário, sempre solitário àquela hora, onde um senhor simpático lhes costumava servir a bica e o pequeno cálice de aguardente, que segundo as suas vãs crenças de inexperientes cidadãos, os tornaria mais homens, capazes de enfrentar a vida e a guerra – se lhes fosse permitido nela participar -, apesar de neles já haver uma centelha de revolta subversiva que os incitava a contestá-la, assim como a tudo o que estava estabelecido: governo, polícia, escola, igreja…
O dono daquele acolhedor café de bairro, um senhor simpático e afável, de meia idade, tinha, visivelmente, uma certa relutância em servir aquele tipo de bebidas a clientes tão jovens e imaturos; contudo, eles pareciam-lhe tão sérios e atinadinhos, afiguravam-se-lhe tão certinhos nos seus estudos secundários, e, para além disso, com certeza que aquele seria o primeiro e o último cálice da noite, que lá os servia, com a deferência que merecem os verdadeiros cavalheiros. Além do mais, aqueles jovens eram clientes certos e de pagamentos imediatos; e, se as suas famílias lhes confiavam assim o dinheiro e se os deixavam andar àquela hora a deambular pelas ruas desertas da cidade, quem era ele para pôr algum obstáculo àquelas existências felizes?
Ao saírem, acesos os cigarros – outro sinal de maturidade e de independência – começava o verdadeiro passeio, que nunca tinha destino certo: ou subiam a calçada, seguindo a linha do eléctrico, para passearem pela Baixa e irem dar junto do rio, ou subiam as ruas dos bairros populares que os levavam sempre a lugares novos e desconhecidos, ou apanhavam um autocarro ou um eléctrico e iam ver um jogo do campeonato de reservas, ou iam por aqueles infinitos caminhos que a grande cidade lhes oferecia – todos novos e todos diferentes, todos cheios de mistério e romance!
Mas, naquela noite, o que primeiro lhes chamou a atenção, logo à saída do pequeno café, foi uma inscrição cor de alcatrão, no alto muro do liceu, que convocava todos para se reunirem… (O resto da mensagem estava ilegível – ou propositadamente, pelo autor, ou por alguém que tentara dissipar a força daquele subversivo apelo).
Os rapazes já estavam alertados para o facto de os tempos irem agitados e, como toda a gente, sentiam que era urgente uma grande mudança, embora a sua inocência e a sua ignorância não os deixassem entender o que era preciso realmente mudar. Contudo, associaram aquelas letras negras a um abortado golpe militar de há um mês, a uma reunião clandestina que tinha havido no liceu, cujos participantes tinham saltado pelas janelas, quando alguém os avisara da presença da polícia, e também às músicas, e aos poemas que alguns, mais velhos, os vinham ensinando a escutar. Por isso, ao tentarem ler aquela inscrição, o que lhes apeteceu logo foi cantar aquelas músicas do Sérgio Godinho e do José Mário Branco, que tanto os seduziam pela força das suas palavras, ou recitar aquele poema, do Manuel Alegre, que falava de um “microfone, de repente, às três e tal, que a lua estoire e o sono estale, e a gente acorde finalmente em Portugal!…”
Com essa alegria resistente e de puro inconformismo juvenil, seguiram o seu caminho sem um destino predefinido.
Chegaram junto do rio e dele receberam a doce e fresca brisa nocturna da Primavera. Inspirados por aquela tranquilidade de águas murmurantes, foram caminhando, ao longo daquela laboriosa margem, passando por destroços de antigos e pobres barcos pesqueiros, por decrépitos armazéns abandonados que expeliam acres aromas de limos e de lixos em putrefacção.
Seguiram sempre cantando e imaginando histórias de aventuras emocionantes, até que chegaram junto daquele cais, de onde partiam os jovens que eram obrigados a embrenhar-se naquela guerra estranha e distante, que os quatro rapazes não entendiam, naquelas selvas profundas e mortais, de onde muitas vezes não regressavam. Talvez por respeito a esses outros rapazes que dali partiam, vestidos de camuflado, talvez por saberem das lágrimas tantas vezes ali choradas, por mães, por noivas, por irmãs, ou por tantos homens – porque afinal, os homens também choram, apesar de lhes terem ensinado que isso seria um sinal de fraqueza – talvez por tudo isso, e por nunca terem deambulado por aquelas paragens, os quatro rapazes emudeceram as suas canções subversivas, atravessando em respeitoso silêncio, muito vagarosamente, a ponte metálica e levadiça que os conduziu ao cais em que, grandes e mudos navios esperavam, misteriosamente acostados.
Nesse cais de tantas lágrimas e de tantas despedidas, os quatro rapazes deixaram soltar as suas imaginações:
- E, se agora houvesse um golpe de estado ou uma guerra?
- Nós podíamos apanhar um destes navios e fugir para longe!
- E podíamos disparar com os canhões e fazer uma revolução!
- E podíamos mudar isto tudo!
- Podíamos acabar com a guerra,
- Podíamos soltar os presos políticos!
- Podíamos acabar com os ricos!
- E podíamos… e podíamos…
Eram tantas as aventuras e tão grande a imaginação, que não haveria palavras para dizer tudo o que eles haviam engendrado, em tão poucos minutos!.
Com tanta imaginação à solta, os destemidos adolescentes nem repararam que o tempo havia passado e era necessário voltar para casa, porque no dia seguinte retomavam-se as aulas, e os testes estavam a chegar, e as notas da Páscoa não tinham sido grande coisa. Portanto, se não se precavessem, o mais certo era apanharem todos um chumbo, no final do ano, arriscando-se às iras dos seus pais, que não teriam qualquer dificuldade em lhes aplicar um exemplar castigo.
Por isso, regressaram, atravessando o viaduto metálico, interdito a peões, que passava sobre a linha do comboio e sobre a Marginal.
Entraram em casa, o mais silenciosamente que puderam, mas não se foram logo deitar, pois, a conversa estava demasiadamente animada e havia assuntos que, forçosamente, teriam que encerrar, antes de irem adormecer pacificamente.
Para lhes fazer companhia, acenderam o transístor na Renascença, que era a estação de rádio que dava os melhores programas: O “Página 1” e o “Limite”.
Àquela hora, era mesmo o “Limite” que se estava a transmitir.
De súbito, algo pouco natural chamou a atenção dos quatro rapazes: o locutor não anunciou a canção que ia apresentar; pelo contrário: recitou a primeira quadra da sua letra, tocou toda a música e voltou a recitar a mesma primeira quadra.

Grândola, vila morena,
Terra da fraternidade,
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade.

Era meia-noite e vinte e cinco minutos, do dia vinte e cinco de Abril de mil nove centos e setenta e quatro.
O resto da história já todos o conhecem…

 

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