Isilda Silva |Onde é que tu estavas no 25 de Abril?

1974. Acordava pelas seis e meia da manhã ao som do TV Rural de Eng.º Sousa Veloso. Saía de casa às sete e meia para apanhar a camioneta do Sr. Eugénio que parava apenas numa das entradas da aldeia. Pelo caminho iam-se juntando mais alguns colegas, a Lina, a Edite, o Orlando. Depois da 4.ª classe, alguns tinham optado por frequentar a escola técnica, noutra localidade, outros começavam agora a abandonar os estudos. Eram os que ficavam para trás. Uma vez chegados a Alcanena, mais quinze minutos a pé até chegar à escola que ficava na outra ponta da vila, isto se o tempo o permitisse; quando chovia, podíamos demorar meia hora e ter que mudar de meias antes de chegar às salas de aula. Chegava a casa sempre às oito da noite, na mesma camioneta do sr. Eugénio.
Há mais de dois anos que esta era a minha rotina semanal, mas não esquecia todos os que já tinham ficado pelo caminho, a Rosinda, o Amílcar, a Cremilde, a Otília e tantos outros a quem a vida e o sistema iam empurrando para o mundo do trabalho precário, os namoros de aldeia e os casamentos apressados, as margens políticas da resistência ou o salto para França, para muitos, como a Rosinda, o último reduto da esperança numa vida melhor. Mesmo que já tivesse constatado que «uns seguiam em frente e os outros ficavam para trás», sabia que era a pobreza que geria o quotidiano de todos nós que às mesmas horas nos levantávamos fosse para mais um dia de trabalho, fosse para apanhar a camioneta do sr. Eugénio.
Aos 13 anos, tinha já, portanto, «uma larga consciência do mundo da vida»: que o sonho de ser feliz não passava pelas «opções» de muitos dos meus amigos; que as ideias veiculadas na missa de domingo podiam não ter razão de ser; que muitas das ideias aceites comumente podiam e deviam ser contestadas…e enquanto a minha mãe me aconselhava sabiamente a prudência, era o silêncio cúmplice do meu pai que me dava asas…
Por essa altura sabia já que os namoricos de aldeia NUNCA poderiam satisfazer a minha noção de felicidade, que a ideia, constantemente repetida na missa de domingo, de sermos «os degradados filhos de Eva» que vivem neste mundo que «é um vale de lágrimas» não podia ser A VERDADE, que o ideal de mulher-dona –de-casa que lia na «Maria» da minha prima Lucinda NÃO correspondia ao perfil de vida que queria para mim.
Começou também nessa altura a minha simpatia pelos índios e os acesos «debates» com o meu vizinho Fernando a partir da coleção «Seis Balas», ele considerando-os selvagens e perigosos, eu, pessoas com outra cultura que valia a pena compreender e aceitar. E era assim que ia interiorizando a ideia de poder haver mais do que uma perspetiva sobre «as coisas da vida».
Também por essa altura me recordo de ter sido expulsa de uma aula por ter contestado a professora de Português a propósito do provérbio «mais vale um pássaro na mão que dois a voar». Queria a professora que interpretássemos o provérbio. Eu respondi que discordava da sua mensagem, por entender precisamente o contrário, que mais vale dois pássaros a voar que um na mão. Ela colocou uma cruz de reprovação na ficha; eu questionei-a. Ela disse-me que eu não tinha respondido à questão; eu respondi que, na minha perspetiva, tinha respondido adequadamente. Ela afirmou que eu estava a ser insolente; eu, que me tinha limitado a responder ao que era pedido. E acrescentei: «se é apenas para dizer o que todos pensam, então não conte comigo!». E acabei na rua.
Valeu-me, como em tantas outras ocasiões, a professora de História. Havia nela uma compreensão que me quebrava as resistências e me levava a recentrar-me naquilo que valia a pena, as boas notas, único passaporte para a vida, dizia-me.
Ela era a única com quem me identificava, não obstante ser em geral boa aluna. Dos restantes, recordo a professora de Francês, à época mulher do Presidente da Câmara e pessoa de poder incontestado por causa da vara que ora apontava para o quadro, ora para as nossas cabeças; recordo igualmente o professor de Matemática, diretor da escola, secretamente cognominado de «o rasteiro» e que por via do exercício das suas funções fazia questão de nos lembrar que na vida como na sala de aula, havia três classes de pessoas e três filas de carteiras: a última, a dos «burros» que teimavam na preguiça e, por isso, ficavam sempre para trás, a do meio, dos remediados, que «também não iam longe» e a primeira, em frente da secretária do professor, a «fila dos bons», a quem a «família, a escola e a nação» depositavam grandes esperanças; para reforçar a sua «lição de vida» dava o exemplo do «menino Chiquinho», filho de um prestigiado empresário de curtumes a quem a mãe, senhora estrangeira de porte altivo e casaco de vison ia todos os dias levar o lanche da tarde.
Recordo ainda a professora de Trabalhos Manuais que queria de todas as meninas um «paninho bordado» em cada período e, finalmente, a professora de Educação Musical que ensaiou connosco durante um ano o Hino da Restauração sem nunca conseguir o mínimo de afinação capaz de nos permitir a participação em algum evento da escola.
25 de abril. Quando, pela manhã, a minha mãe ligou o rádio, surpreendeu-se por ouvir falar em Revolução em vez do TV Rural de Sousa Veloso e, à cautela, decidiu que nesse dia, eu não ia para a escola. Recordo-me de ouvir as «músicas de revolução» e de imaginar o general Spínola como uma espécie de cavaleiro que nos iria libertar da professora de Francês, dos paninhos bordados e do Hino da Restauração. A escola havia de ser outra, com professores iguais à minha professora de História. Finalmente, pensava, as pessoas compreenderiam que a vida não é (só) lágrimas, que havia lugar para a esperança numa vida melhor.
Alguns dias depois, de volta à escola, compreendi que pouco tinha mudado: a professora de Francês continuava em funções e a professora de História, afinal, estava a ser alvo de uma tentativa de saneamento político.
Setembro. Renovação da matrícula. Quando precisei de tirar novas «fotografias de passe», tomei a decisão de assumir a minha (nova) condição de «liberdade revolucionária» contra a condição de «degradada filha de Eva». E anunciei em família, num fim de tarde quente, sentada nos joelhos do meu pai, que no dia seguinte iria sozinha a Torres Novas tirar fotografias. Que não valia a pena demoverem-me. EU já tinha tomado a decisão!
A cidade (então vila) ficava no limiar do meu mundo conhecido, onde tinha ido apenas umas três ou quatro vezes. Era, portanto, território quase inexplorado.
(…) Cinco anos mais tarde, apanho a camioneta em sentido contrário. Lisboa era agora o meu destino. Recordo como se fosse hoje as palavras de despedida do meu pai: «Vai e não voltes. Aqui não há vida para ti!» Era a liberdade que me movia e que o meu pai tão bem pressentia….

 

 

 

 

 

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