Leonor Neto|Chamar a Música


Em pleno século XX, na década de 70, apenas uma pequena fação da população portuguesa tinha acesso a televisão, existindo apenas 2 canais nacionais da RTP, ambos sujeitos à censura. Pelo contrário, a rádio tornava-se a pouco e pouco uma companhia e presença indispensáveis no dia a dia dos portugueses. Na altura, a Rádio Clube Português permitia que toda população tivesse, em suas casas, acesso a informação, programas de entretenimento e música.
Desde sempre, a música tem funcionado como um importante meio de difusão de ideias e convicções. No entanto, Portugal, dominado pela ditadura, estava refém da censura e ideias do regime. Assim, todas as formas de arte que fossem consideradas ameaças ao regime eram censuradas pela PIDE e afastadas da mente do povo.
Durante a ditadura foram, assim, proibidas diversas vozes da oposição destacando-se Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Jorge Palma, José Mário Branco entre outros cantores revolucionários, cujas músicas eram impedidas de passar nas rádios nacionais.
Apesar de tudo, a Revolução dos Cravos começou com música! Foi a música que deu o mote à libertação do povo português: duas músicas, duas senhas e o fim de uma ditadura que assolava o povo português há 48 anos. Com o objetivo estratégico de chegar a uma maior parte da população com mais rapidez e eficácia, a rádio foi o meio de comunicação escolhido para transmitir essas senhas que dariam indicações, aos militares nos vários quartéis do país, relativas ao golpe militar que iriam pôr em prática.
A primeira senha escolhida, “E depois do Adeus” de Paulo de Carvalho, foi transmitida pelos Emissores Associados de Lisboa, às 22:55 do dia 24 de abril e serviu para indicar às tropas o momento de se prepararem e colocarem a postos para o início do golpe militar. Embora inicialmente se tenha escolhido a música “Venham mais cinco” de Zeca Afonso como primeira senha, acabou sendo substituída pela “E Depois do Adeus” por sugestão de João Paulo Diniz, um radialista que trabalhava nos Emissores Associados de Lisboa e na Rádio Clube Português. De acordo com este, a primeira música escolhida, por ser associada a um cantor proibido pelo regime, poderia levantar suspeitas e poria em causa toda a atuação militar. Para além disso, a música que viria a ser usada, “E Depois do Adeus”, uma das mais belas canções escritas em português, já era conhecida do povo, visto que tinha sido consagrada vencedora da 12ª Edição do Festival da Canção realizada a 7 de março desse mesmo ano.
A segunda senha escolhida, essa sim, de Zeca Afonso, uma das poucas do cantor que passou ao lado da censura, e de caráter revolucionário, foi a escolhida para indicar aos militares que estes poderiam sair dos quartéis e prosseguir com a tomada dos objetivos. “Grândola, Vila Morena”, escrita em plena vila alentejana em conjunto com Carlos Paredes e Fernando Alvim, tornou-se assim um dos ícones da revolução, tendo sido transmitida pela Rádio Renascença à 01:00 do dia 25 de abril.
Com a tomada de objetivos estratégicos como as principais rádios nacionais, quartéis militares e aeroportos e assim como o êxito da revolução de abril, tornaram-se conhecidos muitos outros nomes e músicas do pós 25 de Abril. De destaque são a emblemática música, “Somos Livres” de Ermelinda Duarte, as vozes pós revolução, de Fausto e Adriano Correia de Oliveira e o regresso das vozes que o regime tentou adormecer de Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Jorge Palma e José Mário Branco, entre outros.
Juntado à sua pacificidade, o facto de ter tido uma importante banda sonora, confere à Revolução dos Cravos a singularidade que a caracteriza.

 

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